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Opinião | Eleições nos EUA e movimentos populares em tempos de pandemia

A campanha de Bernie Sanders, suspensa, deixa sua contribuição aos movimentos populares que se recusam a esperar

Tradução: Luiza Mançano

Democracy Now! |
“Embora esta campanha esteja chegando ao fim, nosso movimento não está”, disse Sanders ao anunciar a suspensão de sua candidatura - AFP

Os movimentos populares fazem história. Não seguem uma trajetória definida. Não são previsíveis. A aposta de Bernie Sanders pela candidatura presidencial democrata é um bom exemplo. Na quarta passada, Sanders suspendeu sua campanha, o que converteu o ex-vice-presidente Joe Biden num virtual candidato. Sanders se manifestou: “Embora esta campanha esteja chegando ao fim, nosso movimento não está”. Quando milhões de seguidores souberam da notícia, as expressões de desilusão invadiram a internet. Aracely Jiménez, do movimento por justiça climática Sunrise, disse em um comunicado: “Nossos corações estão abatidos. Com Bernie Sanders tínhamos um candidato presidencial cujas soluções visionárias — Medicare para todos, o New Deal ecológico, licença médica remunerada — são exatamente as políticas que necessitamos para sair da crise que estamos vivendo neste momento”.

Os movimentos progressistas que se levantaram contra o presidente Donald Trump e tudo o que ele representa, agora se encontram na encruzilhada da devastadora pandemia da covid-19 e sua consequente recessão econômica, uma depressão plana e lisa. As ações tradicionais (atos políticos, visitas porta a porta, encontros cara a casa) são basicamente canceladas. Será preciso engenhosidade e resiliência para persistir nos próximos meses.

Bernie Sanders conhece o longo caminho percorrido. Em agosto de 1963, quando tinha 21 anos, foi preso em um protesto contra a segregação racial nas escolas de Chicago. Quatro meses antes, na sexta-feira santa, Martin Luther King Jr. foi preso pela 13ª vez, após uma manifestação contra a segregação em Birmingham, Alabama. Foi lá que ele escreveu sua "Carta de uma prisão de Birmingham", em resposta a oito clérigos brancos do Alabama que o trataram como um "estranho" e criticaram suas táticas. Em uma declaração pública, o clero escreveu: "Reconhecemos a impaciência natural das pessoas que sentem que suas esperanças demoram a se tornar realidade, mas estamos convencidos de que esses protestos são imprudentes e inadequados".

Em sua famosa carta, o Dr. King respondeu (usando o léxico racial da época): "Eu tenho ouvido a palavra "espere!" por anos. Essa palavra soa nos ouvidos de todos os negros com uma familiaridade dilacerante. Mas esse "espere!" quase sempre significou "nunca!" Devemos entender, como diz um de nossos ilustres juristas, que "uma justiça muito lenta é uma justiça que não existe".

Em seu anúncio de suspensão da campanha, o senador Bernie Sanders disse: "O Dr. Martin Luther King Jr. nos lembrou que 'o arco do universo moral é amplo, mas se inclina para a justiça'. Nossa campanha se tratou da luta por justiça. Da luta por justiça se trata o nosso movimento".

A deputada de Nova York Alexandra Ocasio-Cortez, talvez a mais importante - e a mais jovem - entre o grupo de ativistas progressistas eleitos para o Congresso em 2018, apoiou Sanders no início de sua campanha. Agora eles estão trabalhando juntos para redigir uma lei federal de resposta à pandemias. Nesta semana, em uma entrevista ao Democracy Now!, Ocasio-Cortez disse: “Uma das principais coisas pelas quais devemos lutar agora é a mesma coisa pela qual lutamos constantemente . Precisamos garantir fortes concessões e conquistar acordos por um futuro progressista em nosso país. ”

Ocasio-Cortez demonstrou indignação diante da disparidade racial entre as vítimas da pandemia nos EUA. Na última sexta-feira, ela comentou em sua conta no Twitter: “As mortes por covid estão aumentando desproporcionalmente nas comunidades de cor. Por quê? Porque o custo crônico da segregação residencial, o racismo ambiental, a diferença de riqueza, etc. SÃO problemas de saúde subjacentes. A desigualdade é uma comorbidade. A ajuda pela covid-19 deve ser desenhada a partir de uma perspectiva de reparação".

As estatísticas por trás da sua postagem são desoladoras: em Louisiana, os afro-americanos representam cerca de um terço da população, mas representam 70% das mortes relacionadas à covid-19. Em Michigan e Illinois, os afro-americanos representam entre 14% e 15% da população e 41% das mortes por covid-19. A disparidade racial também é evidente nas mortes de covid-19 na cidade de Nova York, o epicentro da pandemia nos Estados Unidos. É provável que o verdadeiro número de mortos nunca seja conhecido, já que parte das pessoas, muitas indocumentadas e marginalizadas, morrem em suas casas sem que suas mortes sejam registradas.

Ocasio-Cortez acrescentou na entrevista ao Democracy Now!: “Deveríamos ter sistemas universais em que todos possam ter atendimentos médicos gratuitamente quando precisarem, para que possam obter os cuidados de que precisam. É isso que significa viver em uma sociedade avançada, moderna e humana. Enquanto não conquistarmos isso, não teremos o direito de nos considerarmos uma”.

Noam Chomsky, linguista, escritor e intelectual dissidente de renome mundial, tem 91 anos, a mesma idade que Martin Luther King Jr. teria se não tivesse sido assassinado em 4 de abril de 1968 e vivesse hoje. Nessa semana, Chomsky comentou em uma entrevista ao Democracy Now!: “Agora é comum dizer que a campanha de Sanders falhou. Eu acho que isso é um erro. Foi um sucesso extraordinário. Mudou completamente o cenário do debate. Questões que eram consideradas impensáveis há alguns anos estão agora estão em destaque. O pior crime que ele cometeu, aos olhos do sistema, não é a política que ele propõe; é o fato de que ele foi capaz de inspirar movimentos populares que já estavam se desenvolvendo - como Occupy Wall Street, Black Lives Matter, entre outros - e transformá-los em um movimento ativista, que não aparece apenas a cada dois anos para pressionar uma alavanca e voltar para casa, mas que aplica uma pressão social constante, um ativismo constante".

Para sobreviver a esta pandemia, será preciso solidariedade, disciplina e compaixão a nível global. Os movimentos populares não esperarão pela campanha de Biden ou pelo Partido Democrata. Como Martin Luther King Jr., eles se recusam a esperar.

Edição: Democracy Now