Manobras de Bolsonaro, evolução do coronavírus no Brasil e saúde indígena são temas desta semana
Numa tentativa, talvez desesperada, de mostrar que ainda manda, Bolsonaro mandou Mandetta caminhar. A mudança em meio à pandemia pode representar mais um golpe na política de distanciamento social, a única efetiva contra o coronavírus até agora, além de uma tentativa de retomada do terreno político. É o que vamos tentar entender em oito pontos da semana.
Trilha desta edição: “Canto de Ossanha”, de Baden Powell e Vinícius de Moraes
1. A curva e a negação. Passado o feriado de Páscoa, o registro oficial de óbitos por coronavírus no Brasil ultrapassou a marca dos 200 em dois dias desta semana e já está ultrapassando a marca dos dois mil. Isso oficialmente, como já se sabe. Para ficar em um exemplo pontual, os cartórios de São Paulo registraram 368 mortes a mais por covid-19 entre 16 de março e 15 de abril. A subnotificação de óbitos e casos confirmados se espalha pelo Brasil. Pesquisadores da USP e da UnB apresentaram uma modelagem numérica segundo a qual o número real de infectados no Brasil pode ser 15 vezes maior que a contagem oficial. Apesar de ser o 14º país mais afetado pela pandemia, o Brasil está entre as nações que realizam menos testes em sua população. Se fosse levado em conta o número de casos subnotificados, o Brasil seria o segundo país mais afetado, atrás apenas dos Estados Unidos. O mesmo índice - 15 vezes mais - também é apontado por um estudo da Ufpel a partir de testes realizados no Rio Grande do Sul. Partindo-se apenas dos dados oficiais, um outro estudo da Ufal e da UFRN mostra que, no atual ritmo de evolução da pandemia, os leitos de UTI no Brasil colapsam a partir da próxima terça, dia 21 de abril.
Epicentro do coronavírus no Nordeste, o Ceará já esgotou nesta semana a sua capacidade de receber novos pacientes que necessitem de tratamento intensivo. No Rio de Janeiro, a taxa de ocupação dos leitos de UTI na capital se aproxima de 90%. Há quem diga que a realidade brutal do coronavírus vai acabar com qualquer negacionismo, mas é bom nunca subestimar a desfaçatez dos bolsonaristas. “O presidente se aproveita da subnotificação de casos para fazer propaganda enganosa do fim da epidemia”, constata o colunista da Folha, Bruno Boghossian. Além de tentar tapar o sol com a peneira, o bolsonarismo também atua forte no desvio de assunto: nesta semana, virou notícia até mesmo o inventário de Marisa Letícia, cujos valores estavam levemente exagerados. A saída de Mandetta, que pelo menos apresentava alguma seriedade e admitia o problema da subnotificação, pode aumentar a pressão política sobre a divulgação dos dados. Mas o que esperar de um presidente que não age com transparência nem sobre seu estado de saúde?.
2. É a luz de Mandetta. A novela em torno da demissão do ministro da Saúde, encerrada nesta quinta (16), dá a dimensão de como o governo lida com a crise. Em meio ao “desafio de nossa geração”, Bolsonaro se deu ao trabalho de descobrir qual é a padaria de preferência de Mandetta para fazer uma provocação ao então subordinado. Vamos lembrar que tudo isso começou porque Bolsonaro, assim como já fizeram com Sérgio Moro, não quer que nenhuma sombra cresça no seu entorno.
Diante de uma pandemia histórica, o horizonte de Bolsonaro só vai até 2022. No discurso oficial, Mandetta teria sido demitido por não saber conciliar as ações de saúde com a manutenção do emprego. Para além do ciúmes e das justificativas oficiais, outra história por trás da fritura de Mandetta está relacionada ao reempoderamento do vereador Carlos Bolsonaro como secretário da Comunicação informal de seu pai, na esteira do afastamento do titular, que pegou o coronavírus. Não é à toa que nas últimas semanas os influenciadores da extrema-direita estiveram atuantes nas redes sociais, tentando minimizar a gravidade da pandemia e defendendo o retorno às atividades econômicas. E de certa forma tiveram sucesso na disputa de narrativa, reorganizando as fileiras no Twitter, a rede social que é o centro do debate político e irradia para os demais rincões da internet. Até um dossiê contra Mandetta e seus assessores vinha sendo preparado pela ala militar do Planalto.
Nesta crise, é bom ponderar também que Mandetta cavou a própria expulsão, dando entrevista ao Fantástico do último domingo (12) e criticando abertamente Bolsonaro em entrevistas durante a semana. A pergunta que fica é: por quê? Para se antecipar à demissão, saindo com a popularidade em alta, ou para largar de vez a bomba que está por explodir?
3. E agora, Jair? A demissão de Mandetta deveria ter sido o primeiro passo para uma estratégia de três frentes para o governo sair da encalacrada em que se meteu. Elaborada por aliados, incluía melhorar a articulação política com o Congresso e adotar uma política de comunicação menos polêmica. Duas coisas que não irão acontecer, como o próprio Bolsonaro fez questão de demonstrar, após anunciar a demissão de Mandetta, em entrevista à CNN, voltando a disparar contra Rodrigo Maia e a fazer o que mais tem feito, dizer que manda. Prova cabal de que já não manda mais. Bolsonaro saiu acusando o presidente da Câmara, o STF e até João Dória de tramarem um plano contra ele, abrindo conversas com o centrão numa tentativa de reformular a articulação política com o Congresso.
Para Luis Nassif, a reação era esperada, porque Bolsonaro só conhece a tática do conflito e, na prática, deve afastá-lo ainda mais do Congresso. Do ponto de vista do enfrentamento ao coronavírus, a escolha do novo ministro Nelson Teich, um médico oncologista e empresário, cujo nome foi endossado por um empresário paulista que já indicou Ricardo Salles e Fabio Wajngarten, pode ser interpretada como uma tentativa de encontrar um nome técnico que não vai contrariar o chefe publicamente.
Em artigos na internet, o novo ministro defendeu o isolamento social como política para conter o avanço do vírus, mas seus aliados acreditam que ele vai promover uma conciliação entre a suposta polarização saúde x economia, o que ficou evidenciado em seu discurso desta quinta (16). Essa talvez seja a principal mudança a ser verificada daqui para frente. Um discurso mais alinhado com Bolsonaro que pode jogar por terra o pouco que já foi feito até aqui, como afirma um ex-integrante do Ministério da Saúde.
O próprio Bolsonaro voltou a largar um de seus balões de ensaio, prometendo um novo projeto de lei aumentando a lista de atividades econômicas essenciais. Por fim, Mandetta sai por cima, politicamente, pelo contraste que representava com relação à visão obtusa de Bolsonaro sobre a pandemia, mas seu trabalho também merece muitas críticas, como na questão do atraso no pedido de importação de kits e na encomenda de fabricação nacional que levarão três meses para estarem disponíveis.
4. À espera de um milagre. Em meio à novela Mandetta, causou surpresa o anúncio inesperado do Ministério de Ciência e Tecnologia. Na manhã de quarta-feira (15), o astronauta Marcos Pontes acordou de sonhos intranquilos e anunciou o início dos testes clínicos com um medicamento que teria sido capaz de reduzir em 94% a carga viral do novo coronavírus numa cultura de células in vitro. Cientistas do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (Cnpem), localizado em Campinas, utilizaram um computador com inteligência artificial para ver a interação com enzimas que fazem a replicação do vírus. Destes, seis seguiram para o teste in vitro. Um deles se mostrou especialmente promissor e agora vai para testes clínicos com pacientes infectados. O medicamento é a nitazoxanida 600 mg, um vermífugo conhecido pelo nome comercial Annita. O parecer foi solicitado pelo médico Florentino Cardoso, diretor executivo da Hospital Care, uma rede de hospitais pertencente à Crescera, que até 2018 tinha Paulo Guedes como sócio.
O anúncio chamou a atenção de políticos e médicos porque, ao contrário do que aconteceu com a hidroxicloroquina, Bolsonaro não promoveu a possível descoberta, especialmente depois que um estudo sobre a cloroquina foi cancelado após morte de pacientes em Manaus. Ninguém duvida da seriedade do estudo, mas ainda é cedo para qualquer projeção, e a principal objeção sobre o estudo é que a eficácia do medicamento in vitro não é garantia de nada. E, de acordo com um estudo publicado na China, a nitazoxanida teria se mostrado menos efetiva e mais tóxica que a cloroquina.
A tentativa de fazer segredinho sobre o nome do remédio também foi criticada por cientistas brasileiros, já que a medida contraria os princípios de transparência e publicidade que deveriam reger a pesquisa. Na vida real, o que tem dado resultado é a política de distanciamento social, cada vez mais relaxada em todo o Brasil, e os testes em massa da população, que o país não faz ideia de quantos já fez. Sem testes, não é possível pensar numa distensão gradual do isolamento social, e o que nos resta são as pressões dos grupos econômicos e os incentivos do próprio presidente. Estratégia estúpida, uma vez que, se não for feito agora, o isolamento total pode vir naturalmente, a partir do medo das pessoas assim que a tragédia ficar muito mais visível e assustadora.
5. É só um apocalipsezinho. Não foi nenhuma surpresa a constatação do FMI de que estamos às portas da maior recessão global desde a Grande Depressão, com uma previsão de retração de 3% no PIB mundial. O estudo aponta ainda que o PIB brasileiro deverá cair 5,3% neste ano, cinco vezes mais que a média dos países emergentes. Isso significa uma diminuição de quase R$ 400 bilhões na economia e seria a maior queda brasileira desde 1901. A previsão confirma que a economia brasileira já ia de mal a pior antes da epidemia, ao contrário do que comemorava Paulo Guedes e parte da imprensa, e de que o governo não sabe o que está fazendo ou está fazendo errado em todas as áreas do combate à pandemia.
Diante de um cenário fiscal ruim, o governo aposta que isso não afastará investidores, baseado unicamente na própria crença de que isso não vai acontecer, argumentando que todos os países terão resultados fiscais ruins. Porém, justamente, além do estudo do FMI espantar investidores, em situações como esta os investimentos sempre migram para países mais fortes que os emergentes. E, pior, para enfrentar novas crises cambiais, com o fortalecimento do dólar, ao invés de injetar o recurso na economia e na produção, a brilhante ideia de Paulo Guedes é torrar as reservas internacionais no mercado financeiro para manter a taxa de câmbio, como os R$ 50 bilhões que já evaporaram nestes primeiros meses do ano. Enquanto isso, no Congresso, mais duas derrotas para a equipe econômica: a aprovação da ajuda para estados e municípios, contrariando o Planalto, e o estabelecimento de critérios que impedem o Banco Central de comprar “papéis podres” para ajudar os bancos com recursos públicos.
6. À meia-noite levarei seus direitos. Desde o início, tem se dito que a pandemia poderia ser usada para produzir medidas autoritárias, tomadas na calada da noite e sem discussão. Foi literalmente o que Congresso fez, aprovando a MP da Carteira Verde e Amarela na madrugada de quarta (15), em votação à distância.
Como uma pequena reforma trabalhista, trabalhadores entre 18 e 29 anos ou acima de 55 anos, desempregados há pelo menos 12 meses, e trabalhadores rurais poderão ser contratados por até um salário mínimo e meio e, em caso de demissão, receberão apenas 30% do FGTS, em vez dos 40% válidos para os demais contratos de trabalho. As empresas poderão contratar 25% dos trabalhadores por esta modalidade, o que, segundo o Dieese, deve promover o achatamento da média salarial de inúmeras categorias. As empresas terão isenção total da contribuição previdenciária e das alíquotas do Sistema S. Por outro lado, já como resultado de outra MP, mais de um milhão de trabalhadores tiveram seus salários e jornadas reduzidos ou contratos suspensos. A MP 936 permite negociações individuais para reduzir jornadas e salários em até 70% por três meses para trabalhadores com carteira assinada e que recebem até R$ 3.135 ou que tenham ensino superior e ganham mais de R$ 12,2 mil.
O Dieese criou uma calculadora para apontar a perda de cada trabalhador com a MP. Quanto ao auxílio emergencial, apesar de ter seu pagamento iniciado nesta semana, alguns beneficiários só começarão a receber na primeira semana de maio, de acordo com o escalonamento, “para não formar aglomerações”, segundo a Caixa Econômica. Nesta semana ainda, a Justiça Federal atendeu um pedido do Governo do Pará e determinou a suspensão da exigência do CPF para cadastramento dos beneficiários, o que vinha provocando aglomerações em postos da receita federal.
A decisão foi incorporada pela Câmara que também ampliou o número de categorias que podem acessar o recurso, além de impedir que os bancos usem o auxílio para quitar dívidas dos beneficiários. Ainda na linha do pacote de maldades, os movimentos de moradia denunciam que a Caixa suspendeu a cobrança das prestações do Minha Casa Minha Vida para as faixas 2 e 3 (classe média), mas manteve para a faixa 1, onde estão beneficiários com menor renda. A denúncia agora está sendo apurada pelo Ministério Público.
7. Desmatamento vertical. Se tem uma área que levou a sério o lema “O Brasil não pode parar”, essa área é a do Meio Ambiente. Mas no tocante ao projeto de devastação da região amazônica implementado pelo ministro Ricardo Salles. Na terça (14), ele exonerou o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, o major da PM paulista Olivaldi Azeveldo, até então seu aliado. O motivo? O sucesso, não o fracasso, de uma operação de agentes do órgão contra o garimpo ilegal em três terras indígenas no interior do Pará. A operação foi mostrada pelo Fantástico do domingo (12) e desagradou o governo aliado de garimpeiros e demais desmatadores.
A questão é muito preocupante não somente pela escalada do desmatamento na região, como publicamos na semana passada, mas porque o avanço dos invasores representa um sério risco à saúde dos povos indígenas que habitam a Amazônia. Dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) mostram uma rápida escalada no número de contaminados entre indígenas. Precariamente assistidas pelo governo e pressionadas pela crescente onda de invasões em seus territórios, as comunidades indígenas enfrentam quase sozinhas o avanço da pandemia do coronavírus nas aldeias, contando basicamente com o trabalho de suas lideranças comunitárias, das entidades indigenistas e profissionais de saúde.
Em ao menos 12 estados, índios de várias etnias fecharam o acesso a suas terras por conta própria. Um exemplo de que os indígenas estão abandonados à própria sorte é a reportagem do Estadão, que revela que a Funai, órgão ligado ao Ministério da Justiça, recebeu há duas semanas R$ 10,840 milhões de recursos emergenciais para usar na proteção de indígenas contra o coronavírus, mas nenhum centavo desse recurso foi utilizado.
8. Ponto Final: nossas recomendações de leitura.
. Corrida por uma vacina contra a Covid-19 se acelera. Os projetos dos Estados Unidos e da China, que começaram seus testes clínicos no mês passado, continuam na liderança: o injetável do gigante asiático já está preparado para passar para a segunda fase. Reportagem do El País.
. Os erros e acertos de Mandetta na Saúde, em duas análises. O Nexo escutou o doutor em Ciências da Saúde Mario Scheffer (USP) e a doutora em Ciências Políticas Sonia Fleury (Fiocruz) para avaliar o desempenho de Mandetta até aqui e as perspectivas para o Ministério.
. Entre saúde pública e democracia. Artigo de Natália Pires de Vasconcelos para a revista quatrocincoum relacionando os direitos à saúde pública com o direito a democracia e vice-versa.
. 'O medo é uma segunda pandemia'. Para o pesquisador das Ciências Sociais aplicadas à Medicina, professor Claudio Bertolli Filho, o medo se dissemina na mesma proporção que a epidemia, o que o faz prever o aprofundamento das desigualdades sociais após a crise.
. “A alternativa ao isolamento é muito mais gente morrer, não tem outra”. Na Agência Pública, a bióloga Natália Pasternak lembra que não há ainda nenhum medicamento para tratar o coronavírus e que relaxar o isolamento seria decretar a morte de muitas pessoas por falta de condições para tratá-las.
. Tacanha e picareta, um retrato de nossa elite. Desconectada do mundo real e sem projeto de país, ela quer o fim da quarentena – mesmo que custe milhares de vida. Para isso, usam estratégias torpes: demissões em massa e chantagens políticas. Artigo de Paola Colosso no Outras Palavras.
. "Fora, Bolsonaro": o que pensam partidos e juristas sobre um possível impeachment. Reportagem do Brasil de Fato consultou lideranças de legendas progressistas para analisar o futuro cenário da presidência.
Obrigado pela leitura, continue se cuidando, não saia de casa e recomende a inscrição na newsletter para as leituras essenciais neste período. Até a semana que vem.
Edição: Rodrigo Chagas