No dia 6 de abril, o reitor da Universidade de São Paulo (USP), Vahan Agopyan, enviou uma nota à comunidade discente afirmando que a “agilidade” em lidar com a pandemia causada pelo novo coronavírus prova que a “USP é uma instituição madura academicamente e estava preparada para responder a esse desafio”. No documento, ele agradece a todos que estão se esforçando para dar continuidade ao ano letivo e afirma que as dificuldades vêm sendo superadas a cada dia.
A posição do reitor, no entanto, parece estar distante da realidade dos estudantes da universidade, que enfrentam, por exemplo, desestabilização da saúde mental e falta de acesso à internet, o que impossibilita ou dificulta o acompanhamento das aulas no modelo de educação a distância. É o caso da estudante Carolina Melo, de 28 anos e do curso de Letras, para quem a reitoria “está tendo uma postura completamente de conto de fadas”.
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“Eles estão falando que está sendo ótimo e que a gente está continuando as atividades como EaD. Mas ele [reitor] fala de um lugar que parece que ele não sabe o que está acontecendo na própria universidade que ele toma conta, porque não tem nada disso”, afirma.
Carolina também é professora contratada como pessoa jurídica (PJ) e vive, diante da pandemia, a incerteza se continuará empregada ou não. Dentro de casa, sua mãe é idosa e hipertensa, o que a coloca dentro do grupo de risco de contaminação por covid-19. O estresse é tamanho que ela afirma “não ter cabeça” para se dedicar aos estudos da maneira adequada.
“É uma coisa enlouquecedora, porque a gente está em casa, mas não tem divisão do que é a casa, lazer, trabalho, estudo. É difícil ter cabeça e concentração. Fiquei uma semana sem conseguir ler, e sou do curso de letras, basicamente o meu trabalho é ler, e eu não tinha capacidade emocional de sentar e ler um livro. Eu ficava agitada, mudando de página sem saber o que estava acontecendo”, desabafa Carolina, cujo maior problema esbarra na questão de saúde mental.
Acesso a internet e aulas online
O problema de Márcia Gabriela, de 20 anos e estudante de Educomunicação na USP é de outro tipo. A única internet a que tem acesso é a do celular, de 3GB, por onde mal consegue acompanhar as aulas, que sempre “travam”. “O acesso é difícil, porque eu só tenho 3G, e eu tenho um notebook, porém se eu rotear a internet para o computador eu tenho muito menos internet para usar o mês inteiro, porque o computador consome muito mais do que o celular. Então eu estou usando só o celular e o 3G para fazer tudo, seja leitura ou as aulas pelo meets ou zoom”, afirma.
Também diferente da situação de Carolina Melo é a de Franklin Pontes, de 25 anos, estudante de letras e morador do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP), onde não havia acesso à internet até segunda semana de abril, quando a Reitoria disponibilizou 260 modens para os 1600 alunos que moram no local. “Segundo eles [a Reitoria], esses 20GB dá para 100 horas de vídeo aulas. Agora tem amigos meus que já usavam esse mesmo modem falando que isso não dá uma semana.” afirma o estudante.
A reitoria não pode pensar que a gente está em um momento normal da nossa história e que todos os alunos têm a saúde mental em dia para superar esse momento
Um dos problemas apontados por ele é que a disponibilização tardia do acesso à internet, cerca de um mês depois do encerramento das aulas presenciais, deixará alunos, como Franklin, em defasagem com relação aos estudantes sempre tiveram o acesso, como Carolina. Ela afirma que suas aulas estão sendo realizadas com a utilização desde blogs, Youtube, e a própria plataforma de aula online expositiva da USP, o Meets. “Tem de tudo, eu já fiz todas as plataformas possíveis no último mês.”
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Mesmo partindo de condições diferentes, a constatação dos alunos converge quando o assunto é a ausência de uma orientação padronizada aos professores e estudantes: têm aqueles que estão cobrando presença por meio de plataformas virtuais, outros que estão aplicando atividades avaliativas e aqueles que só estão dando continuidade ao conteúdo trabalhado em aula como se fosse um grupo de estudos. Os professores “não têm informação também. A gente conversa com os professores nas nossas interações e eles também estão na mesma situação que a gente. A gente tem relatos de professores que sumiram e a gente não sabe se está bem de saúde. A gente fica num lugar de não ter noção do que está do outro lado”, afirma Carolina.
Franklin se soma à angústia de Carolina: “A reitoria não pode pensar que a gente está em um momento normal da nossa história e que todos os alunos têm a saúde mental em dia para superar esse momento. Conheço muitos alunos que não estão conseguindo lidar bem com a situação”.
Para ele, a situação piora quando se está no CRUSP. Quem entra em cada um dos oito prédios construídos na década de 1960 tem a sensação de voltar no tempo: áreas comuns, como lavanderia e cozinha, danificadas; risco de incêndio, elevadores quebrados, paredes se desfazendo e infiltrações. O cenário, em tempos de pandemia, dá o tom distópico de abandono descrito por Franklin.
Os moradores receberam da Reitoria e da Secretaria de Assistência Social (SAS) da USP um kit com material de limpeza, como desinfetante e álcool. Também receberam cestas básicas, mas por uma ação do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da universidade em parceria com a Rede de Solidariedade para Mudar SP, que recolhe doações para pessoas de baixa renda, durante a pandemia de covid-19, como informou o próprio DCE.
Se os alunos não tivessem se movimentado, eu não sei se a gente teria recebido essas coisas da reitoria
Em ambas as doações, Franklin acredita que só foram feitas em decorrência da movimentação dos alunos. “Se os alunos não tivessem se movimentado, eu não sei se a gente teria recebido essas coisas da reitoria em si, da SAS. Então querendo ou não essa é uma questão de abandono. Se a gente não tivesse agido, a gente estaria abandonado.”
O que a USP diz sobre os relatos?
Solicitada para se posicionar diante dos relatos, a reitoria, por meio da assessoria de imprensa, enviou um documento com diretrizes ao corpo docente a serem seguidas durante a quarentena. Em uma das orientações, o reitor afirma que “é importante ressaltar que a avaliação de exequibilidade pelas Unidades, comissões de graduação e comissões coordenadoras de curso não inclui apenas a possibilidade de preparação e distribuição das atividades, mas também a possibilidade de acesso pelos estudantes, de forma a garantir que estes tenham mínimas condições de realização das atividades”.
A assessoria de imprensa da USP informou que o Escritório de Saúde Mental da USP e o Instituto de Psicologia estão prestando atendimento psicológico online para a comunidade universitária. Também está sendo realizado atendimento online por meio do programa Acolhe USP para aqueles que precisam de auxílio em decorrência do uso excessivo de álcool ou outras drogas.
Aos alunos do CRUSP, cada um deles é acompanhado por um assistente social e, diariamente, recebe marmitas de café da manhã, almoço e jantar, uma vez que o Restaurante Universitário não está funcionando em razão das medidas de distanciamento social.
A Reitoria também enviou aos alunos um e-mail comunicando que irá disponibilizar internet para todos aqueles que estão com matrícula ativa ou trancamento de matrícula em 2020 por falta de acesso à internet. Os solicitantes deverão atender critérios socioeconômicos definidos no Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil.
Aos estudantes de pós-graduação, a Pró-reitoria de Pós-graduação também informou que está disponibilizando kits de internet. Inicialmente, os kits foram entregues para 121 para moradores do CRUSP, enquanto 10 deles ainda esperam para receber. Na segunda etapa, direcionada para todos os alunos da USP, 44 deles solicitaram o kit. E, na terceira fase, a Pró-reitoria de Pós-graduação espera distribuir 158 kits. Para solicitar, o estudante deve se inscrever um formulário disponibilizado pelo órgão até o dia 22 de abril.
A reportagem do Brasil de Fato também entrou em contato com a Associação dos Docentes da USP (ADUSP) para comentar os relatos, mas a pedido do professor Rodrigo Ricupero, presidente da ADUSP, a Secretaria da Diretoria se restringiu a afirmar que a ADUSP não responde pela USP.
Edição: Vivian Fernandes