Segundo país mais populoso do mundo, com 1,3 bilhão de habitantes, a Índia está prestes a completar um mês em quarentena. Esta é a maior política de isolamento social decretada por um governo na história da humanidade e será mantida pelo menos até 3 de maio.
Quase 80% dos casos de coronavírus no país asiático estão concentrados nos estados de Maharashtra, Madhya Pradesh, Gujarat e Delhi – regiões central, oeste e norte.
Desde o anúncio das paralisações, em 22 de março, a Índia teve 17 mil pacientes infectados. O Brasil, no mesmo período, registrou 37 mil novos casos e quase cinco vezes mais mortes por covid-19.
“Países adotam diferentes critérios para definir quem será testado, que tipo de testes serão feitos e com qual intensidade. Por isso, as comparações nem sempre são ideais”, pondera o médico Prashanth Nuggehalli Srinivas, pesquisador do Instituto de Saúde Pública (IPH) em Bangalore, no sul da Índia. Ao analisar especificamente o caso indiano, ele não tem dúvidas de que a decisão de impor uma quarentena nacional foi acertada.
“Qualquer medida que reduza a chance de as pessoas se encontrarem e conviverem tende a funcionar, porque desacelera a transmissão. Porém, esse processo só será bem sucedido se, durante a quarentena, o sistema de saúde for aprimorado. A paralisação, por si só, não é o que traz resultados”, analisa.
O setor privado concentra 72% dos hospitais e 60% dos leitos hospitalares no país. O governo central cogita transformar parte das instituições privadas em unidades de atendimento exclusivo a pacientes de coronavírus, para aliviar a sobrecarga do setor público após a quarentena. O Ministério da Saúde não divulgou o valor estimado do investimento nem quais hospitais estariam na mira do Estado.
O cenário mais grave está em Mumbai, capital do estado de Maharashtra. Há quatro dias, esgotaram-se os leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) na cidade, que é a segunda mais populosa da Índia, com 19 milhões de habitantes.
Prashanth afirma que o principal desafio nas próximas semanas será redefinir a forma de lidar com pessoas com sintomas de covid-19 no interior do país. Como faltam testes na zona rural, muitos pacientes assintomáticos ou com sintomas leves são levados a hospitais de referência, sobrecarregando o sistema e entrando em contato com outros infectados desnecessariamente.
“Precisamos focar em formas de contenção mais descentralizadas. Enquanto a gente mantiver os testes concentrados em grandes centros, em nível regional ou distrital, seguiremos transportando as pessoas e criando, nós mesmos, áreas com alta incidência do vírus, onde vários possíveis infectados estão reunidos”, alerta o médico. “Isso é problemático, especialmente porque enfrentamos uma escassez de equipamentos de proteção individual”.
Nas últimas semanas, Prashanth e o IPH vêm trabalhando para aprimorar a comunicação entre profissionais de saúde em pequenos vilarejos do país. A organização disponibilizou um checklist para orientar os agentes comunitários no campo e na cidade sobre como agir diante de suspeitas de coronavírus. O objetivo é assegurar o devido encaminhamento aos pacientes com sintomas de covid-19, descentralizando os cuidados e possibilitando que o país flexibilize gradualmente os bloqueios.
A Índia tem cerca de 150 centros de testes e pouco mais de 60 mil leitos públicos reservados para pacientes com covid-19. O próprio governo admite que os números são insuficientes, considerando que quase 900 milhões de pessoas vivem na zona rural e a maioria está distante de centros de testagem. Até o dia 5 de abril, o país havia feito 47 testes para cada 1 milhão de habitantes, quase dez vezes menos do que os Estados Unidos, por exemplo.
Diante dessa defasagem, Prashanth sugere isolar e monitorar os pacientes com suspeita de coronavírus e só conduzi-los a um hospital de referência se o quadro se agravar. “O número de pessoas que desenvolvem problemas graves e que precisam de respiradores ainda é pequeno, mas não conseguimos prever quem vai precisar”, explica.
A Índia diagnosticou, até esta segunda-feira (20), 18.539 casos de coronavírus e 592 mortes por covid-19. No ranking de nações afetadas pela pandemia, o país asiático aparece em 17º lugar, seis posições atrás do Brasil.
Sacrifícios
Nenhum país decretou bloqueios tão rígidos para enfrentar a disseminação da doença quanto a Índia. A polícia só libera o trânsito de trabalhadores de serviços essenciais e de quem sai de casa para comprar comida e medicamentos. Ao redor do mundo, circulam imagens de agentes de segurança indianos agredindo ou constrangendo cidadãos que violam a quarentena.
O governo apresentou dois pacotes emergenciais para enfrentar o coronavírus: o primeiro equivalente a R$ 113 bilhões, no dia 26 de março, e o segundo de R$ 10 bilhões, há dez dias. Além de benefícios para agricultores, idosos, viúvas pobres e pessoas com deficiência, foram lançados programas de empréstimo a juro zero e fornecimento gratuito de gás de cozinha para populações vulneráveis.
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Cidadãos cadastrados em programas de distribuição de alimentos recebem um suprimento mensal extra: 5 kg de farinha de trigo ou arroz por pessoa e 1 kg de lentilha por família. Mulheres que têm contas vinculadas a programas de transferência de renda recebem um benefício extra de R$ 35 por mês; idosos e pessoas com deficiência, o equivalente a R$ 70.
Cerca de 90% da força de trabalho na Índia atua na informalidade, o que dificulta o acesso à seguridade social ou a programas de compensação de salários e proteção do emprego em momentos de crise.
Efeitos colaterais
Segundo o Centro de Monitoramento da Economia Indiana (CMIE, na sigla em inglês), o número de desempregados no país saltou de 8,4%, em 22 de março, para 23,4%, em 5 de abril. O dado não foi reconhecido pelo governo indiano.
Vikas Rawal, professor de Economia da Universidade Jawaharlal Nehru (JNU), na capital Nova Delhi, fez um levantamento do número de mortes “em decorrência da quarentena”, considerando apenas as que foram noticiadas pela imprensa local.
A pesquisa aponta que mais de 50 morreram de fome, por dificuldade de acesso a medicamentos, ou cometeram suicídios motivados por perda de renda e falta de comida. Ao menos 35 migrantes foram atropelados quando voltavam a pé para suas casas, sete foram assassinados — por civis — por violarem a quarentena, e 40 se suicidaram por abstinência de álcool, que não é considerado um item essencial na Índia.
Quase todas as mortes, segundo o pesquisador, poderiam ser evitadas com um planejamento mais eficiente. “Não há justificativa para os trabalhadores migrantes das cidades não terem sido avisados de que essas medidas seriam tomadas. Se eles precisavam voltar para seus vilarejos, eles deveriam poder fazer isso antes da quarentena. Também não há justificativa para os agricultores não serem avisados com antecedência”, ressaltou, em entrevista ao canal indiano Newsclick.
Oferta e demanda
A prorrogação da quarentena até 3 de maio sem o anúncio de um novo pacote econômico, na interpretação de Rawal, pode agravar o desabastecimento e a inflação.
“Existe uma ruptura na relação entre oferta e demanda. A demanda colapsou, e a oferta não está sendo suficiente”, explica. “Hoje, o produtor de leite, por exemplo, não consegue vender, e muitos cidadãos não conseguem comprar, porque os preços ao consumidor sobem”.
Não há saída para a crise — segundo o economista — se o governo não introduzir uma política de subsídios aos produtores rurais, garantindo o escoamento da produção e a redução dos preços nas prateleiras. Ao mesmo tempo, é preciso aprimorar os sistemas de distribuição e acesso a alimentos, como já vem sendo feito em estados do sul da Índia. “E todos os que estão sem trabalho devem receber pagamento integral por parte do governo”, acrescenta Rawal.
A Índia tem cerca de 800 milhões de cidadãos em situação de pobreza e extrema pobreza. A desnutrição, que já atingia 194 milhões de indianos antes da quarentena, fragiliza o sistema imunológico e aumenta o risco de contágio.
Para o médico Prashanth Nuggehalli Srinivas, saúde e economia devem caminhar juntas. Ou seja, a política de isolamento deve ser revista à medida que o governo encontre saídas para minimizar os prejuízos à população.
“As decisões sobre a quarentena são políticas, e a ciência é apenas um dos fatores considerados pelo governo”, reconhece. “A quarentena não é um cobertor sob o qual podemos enfiar a cabeça, e aí o monstro desaparecerá. Precisamos olhar de maneira apurada para os números em cada pequena comunidade e propor um relaxamento gradual das paralisações. A saúde é prioridade, mas o país não pode ficar parado para sempre”.
Retorno gradual
Nesta segunda-feira (20), estados como Kerala, Haryana e Madhya Pradesh deram o primeiro passo para flexibilizar a quarentena em distritos onde não há casos de covid-19, extrapolando em alguns casos as diretrizes do governo central. No estado de Bengala Ocidental, servidores públicos, de empresas de tecnologia da informação e setores da indústria têxtil voltaram a operar com 20% da capacidade.
Edição: Camila Maciel