Enfermeiros e técnicos de enfermagem do Hospital Vida’s, localizado na zona sul da cidade de São Paulo, denunciaram ao Brasil de Fato que estão trabalhando em meio à pandemia da covid-19 sem o Equipamento de Proteção Individual (EPI) adequado.
Na linha de frente no combate à proliferação do coronavírus, a categoria está frequentemente exposta à doença respiratória que contaminou 40 mil brasileiros e, de acordo com dados divulgados pelas secretarias estaduais de saúde nesta segunda (20), já causou 2.484 mortes.
Segundo as fontes entrevistadas pela reportagem, no preocupante contexto, o tratamento que o Hospital Vida’s tem cedido aos seus profissionais é exemplo de descaso. Sem a proteção recomentada pelos órgãos sanitários, os trabalhadores da unidade hospitalar privada tem adoecido a cada dia.
A técnica de enfermagem Camila, que teve seu nome alterado por receio de retaliação, está entre os trabalhadores afastados da função após apresentarem os sintomas do coronavírus. Ela cuidou diretamente de pessoas internadas na UTI exclusiva para os pacientes positivos para a covid-19, onde alguns estão entubados.
No início do mês, sentiu o cansaço aumentar, acompanhado de falta de ar, febre e muita tosse. Há sete anos na profissão, Camila não tem dúvida que a ausência do material adequado a tornou mais suscetível ao vírus. Ela afirma que os trabalhadores cumprem a jornada de 12h apenas com uma máscara cirúrgica e descartável.
“A [máscara] N95 eles não forneceram pra gente. Eles estão obrigando a gente a pegar a cirúrgica, que não tem proteção nenhuma. Não tenho acesso à roupa. Eles deram um privativo para entrar na UTI, mas não é um EPI contra contaminação. Ficamos com as mãos de fora, braços de fora. É como se fosse um uniforme”, conta a técnica, que só foi afastada com atestado após ser atendida em uma unidade básica do Sistema Único de Saúde (SUS).
A ausência de socorro também é denunciada pela trabalhadora. “Não tive nenhum atendimento deles, saí de lá com dispneia [falta de ar]. Fui procurar a enfermeira e ela me disse que não poderia fazer nada, para me dirigir a um hospital público e que não poderiam fazer nada. Tive que procurar a unidade de saúde pública mais próxima da minha casa para que eu me tratasse”, relata.
Os funcionários dizem que a única forma de serem atendidos no hospital seria por meio de um convênio particular. No entanto, muitos profissionais como Camila, que não recebem dois salários mínimos como renda mensal, não conseguem arcar com o custo adicional.
Atuando na mesma função mas na UTI adulto, Priscila* também foi contaminada e só conseguiu ser afastada para realizar o tratamento e fazer o teste para o coronavírus por trabalhar em um hospital do SUS. Devido ao duplo vínculo, o atestado foi apresentado e aceito pelo Vida’s.
A técnica, que perdeu o paladar e o olfato por alguns dias, assegura que nenhum profissional de saúde do hospital privado tem os EPIs corretos à sua disposição. Ela detalha que trabalhadores de diversas áreas formam fila para retirar máscaras cirúrgicas, mas assinam um documento como se recebessem a N95.
“Eles não querem saber se estamos doentes ou não. Nossa vida está colocada em risco a partir do momento em que não temos EPI. Temos um avental ralé para ficarmos doze horas passando de leito em leito, infectando todo mundo. Estamos infectando os pacientes. A norma é usar com um paciente e descartar. Se usamos aquilo 12h, vou de um lado pro outro, é uma contaminação comunitária”, alerta Priscila sobre o cotidiano na UTI adulto do Vida's.
“Onde já se viu orientar um funcionário a pegar um avental descartável, virar ao avesso e reutilizar?”, questiona.“Os donos entram todos paramentados mas nós não temos o EPI. Não temos máscara, não temos toca. Tínhamos tudo isso e quando deu o boom [do coronavírus] retiraram o material do arsenal”.
De acordo com ela, diferente do hospital do SUS onde trabalha, em que os leitos com pacientes confirmados ou com suspeita da covid-19 são separados por box, o Vida’s separa os pacientes apenas com uma cortina.
Priscila afirma ainda que o local para onde os corpos que vieram à óbito são levados, ficam ao lado das roupas, lençóis e toalhas esterilizadas. “O Vida’s tem que passar pela vigilância sanitária”, defende.
Camila, que em breve retornará ao trabalho, se preocupa por ter pessoas do grupo de risco em casa e sofrer novamente com a falta de assistência. “Um hospital desse deveria ser fechado. Eu repudio. Pessoas que estão ali para cuidar de outros doentes não tem cuidado do próprio hospital, não tem nenhum aparato, nada”, afirma.
Sem atendimento
A indignação com a instituição também é compartilhada pelo enfermeiro Carlos* que, apesar de ter informado sua coordenadora que estava sentindo uma forte dor no peito, não recebeu ajuda imediata.
Contratado como pessoa jurídica (PJ) e sem convênio, foi orientado a procurar o SUS mas não conseguiu fazer o teste. Com a persistência dos sintomas, decidiu procurar outro hospital particular para se tratar, onde confirmou que de fato foi contaminado.
“Quem deveria prestar assistência é a instituição que eu trabalho. Mantendo os mesmo sintomas, fui em uma instituição privada e tive que desembolsar mais de R$500 pra poder ser atendido, pra poder fazer uma tomografia e o exame do coronavírus. O hospital Vida’s não me prestou nenhum socorro. Nenhum atendimento. Nenhuma solidariedade”, lamenta.
Com atestado, Carlos está com medo de ser desligado do hospital ao retornar ao trabalho, mas acredita que caso tivesse recebido o tratamento pelo Vida’s, teria se sentido melhor mais rapidamente e já teria retornado ao trabalho.
“Tem muitos casos de profissionais afastados que não estão tendo suporte nenhum. Meu caso é mais um deles. Como uma instituição que pede e ordena tanto, não presta assistência aos profissionais? Sem os profissionais não tem hospital", questiona.
Ameaça à saúde
A presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Estado de São Paulo (SEESP), Solange Caetano, critica o cenário descrito pelos trabalhadores. Ela explica que Carlos, por exemplo, por ser enfermeiro, deveria estar contratado pelo regime CLT e ter um convênio de saúde pago pela instituição, seguindo determinação da convenção coletiva da categoria.
“Se não tem, eles [enfermeiros] têm que ser, obrigatoriamente, atendidos pelo próprio hospital e e o hospital é responsável pelo cuidado desses profissionais, afinal de conta eles são trabalhadores da instituição”, comenta Caetano. “Vejo isso como um descaso total com os profissionais, como se usasse enquanto a pessoa está bem, e depois, que não serve mais porque adoeceu, descarta e não dá o mínimo de atenção e cuidado”, afirma.
Sobre a ausência de EPIs, Solange define a situação como “gravíssima e bastante comprometedora”. “Coloca em risco a vida do trabalhador, dos seus colegas, a vida dos pacientes que não estão contaminados pela covid e estão sendo atendidos por esses trabalhadores, assim como a vida de seus familiares. É óbvio que em uma UTI, não pode, de forma nenhuma, o trabalhador continuar trabalhando somente com máscara cirúrgica. Ele tem que usar a N95 ou a PFF2, que são as máscaras adequadas para filtragem”, endossa a sindicalista.
Falsas acusações
Em nota enviada para a reportagem do Brasil de Fato, o Hospital Vida’s afirmou estar sendo vítima de “fake news” e classificou as acusações como infundadas.
“Infelizmente, num momento de tanto esforço na área da saúde, onde os hospitais estão lotados devido ao alto grau de contaminação do coronavírus covid-19, algumas pessoas irresponsáveis não perdem tempo em acusar as instituições sérias por atitudes inverídicas e injustas”, diz o texto.
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O grupo hospitalar informou que tem uma média de atendimento diário de 900 pessoas no Pronto Socorro, totalizando mais de 30 mil atendimentos mensais, incluindo partos, internações clínicas e cirúrgicas.
“Para atender os casos dessa pandemia foram feitos muitos investimentos em equipamentos hospitalares para atendimentos aos pacientes, além de kits completos de equipamentos de proteção para uso dos profissionais, tendo se tornado, inclusive, o hospital referência do grupo para atendimento dos casos de covid-19”, registra a nota.
A piora no quadro de saúde de outra enfermeira, que também teria testado positivo para a covid e teria o atendimento negado pelo hospital, fez com que imagens e memes citando o Vida’s em tom crítico circulassem nas redes sociais.
Em resposta, o grupo também informa que “diante das inverídicas acusações já foi comunicado à autoridade policial competente para apuração dos crimes cometidos e seus responsáveis”.
Desprotegidos
A falta de EPIs para uso dos profissionais de saúde tem se repetido em todo o estado de São Paulo. Segundo dados disponibilizados pelo Conselho Regional de Enfermagem (Coren-SP) ao Brasil de Fato, 889 denúncias envolvendo a não disponibilidade dos equipamentos foram recebidas durante o período de 1º de março a 20 de abril.
O conselho também tem recebido denúncias que envolvem o impedimento de uso de EPI pelas chefias, falta de funcionários e violências de profissionais. Em relação ao número de infectados, o Coren SP registra 8 óbitos de profissionais positivos para a covid-19 e 6 mortes com suspeita.
Mais de mil trabalhadores estão afastados também investigando a contaminação pelo vírus; 59 estão internados, 355 tiveram diagnóstico confirmado e estão em quarentena.
Frente aos registros, Eduarda Ribeiro, primeira-secretária do Coren SP, avalia que a situação é importante mas pondera que é preciso ir in loco para entender a realidade de cada hospital.
Segundo ela, a intensa chegada da pandemia ao país e ao estado, que ultrapassa mil mortes pelo coronavírus e centraliza a maior parte dos casos, gerou um aumento muito grande do uso de máscaras descartáveis, o que pode ocasionar dificuldades no fornecimento.
“As empresas não estavam prontas para atender essa demanda. No Brasil e no mundo tem acontecido dessa forma. Também tem a questão do uso racional da EPI, não adianta usar de forma indiscriminada. Temos que pensar de que forma vai ser utilizado, utilizar de forma racional, por meio de protocolo, para a proteção do profissional”, diz Ribeiro, acrescentando que as equipes precisam ser orientadas a usar os materiais específicos nos momentos adequados.
Ela reitera que a fiscalização in loco é indispensável neste momento de crise. “Estamos indo nas instituições, temos fiscais e conselheiros que fazem a verificação in loco e montamos uma sondagem pros profissionais de enfermagem nos falarem o que está faltando. Temos a preocupação de não sermos levianos. Precisamos ir para ver exatamente o que está acontecendo. Se aquela instituição não oferece porque, na verdade, não quer oferecer. Ou se a instituição, mesmo preocupada em oferecer, não tem conseguido adquirir para oferecer”, explica.
Após a visita do Coren aos hospitais, os relatórios são enviados ao Ministério Público do Trabalho (MPT) para as devidas providências, assim como aos sindicatos da categoria, que estão em constante comunicação com o órgão.
A primeira-secretária afirma ainda que, nos próximos dias, o conselho receberá um contingente de máscaras do Conselho Federal, que será distribuído para os hospitais em situação mais crítica no estado.
O SEESP, por sua vez, também informa que tem recebido, em média, cem denúncias diárias envolvendo instituições públicas e privadas, da capital e do interior do estado.
Solange Caetano detalha que as reclamações são sobre a ausência de EPIs, mas também sobre a má qualidade do material disponibilizado, e reforça a necessidade de denunciar as situações ao sindicato, assim como ao MPT.
Salários atrasados
Além da falta de EPIs, as técnicas de enfermagem do Hospital Vida’s também denunciam que, há meses, não têm recebido o salário completo. Em abril, por exemplo, receberam 40% e estão sem previsão para o restante do pagamento, comprometendo as condições de sobrevivência das famílias em meio à pandemia.
:: Profissionais de saúde residentes denunciam que estão há um mês e meio sem receber ::
Elas também alegam que, com o aumento dos casos do coronavírus, a alimentação disponibilizada anteriormente no turno de 12h foi suspensa. Dessa forma, para se alimentar, mesmo tendo o ticket alimentação em mãos, precisam levar comida de casa ou ficam o período sem se alimentar.
O Brasil de Fato também questionou o Grupo Hospitalar Vida’s sobre o atraso nos pagamentos e corte na alimentação, mas não obteve respostas sobre esses pontos.
A presidente do SEEP avalia que, durante o combate ao coronavírus, os profissionais da saúde no geral não têm sido respeitados, nem recebido o tratamento que mereciam. “Não dá para continuarmos vendo os profissionais atendendo os pacientes sem se cuidar. É preciso que as autoridades tomem consciência de que se não tiver trabalhador com saúde para cuidar dos pacientes, o colapso da saúde vai ser muito pior do que o anunciado. Além de não ter equipamento, material e leito, não vai ter profissional”, lamenta Caetano.
O que é coronavírus?
É uma extensa família de vírus que podem causar doenças tanto em animais como em humanos. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), em humanos, os vários tipos de vírus podem causar infecções respiratórias que vão de resfriados comuns, como a síndrome respiratório do Oriente Médio (MERS) a crises mais graves, como a síndrome respiratória aguda severa (SRAS). O coronavírus descoberto mais recentemente causa a doença covid-19.
*Atualização da matéria às 12h05 do dia 22 de abril para esclarecer que a foto dos aventais disponibilizadas pela fonte, segundo ela, é da área UTI-Adulto do Hospital Vida's
Edição: Leandro Melito