Após meses de alastramento da pandemia do novo coronavírus já é possível fazer alguns balanços sobre a resposta dos diferentes países, e sistemas socioeconômicos, à crise sanitária. É evidente que esta pandemia é um acontecimento de grande relevância na história e desatará processos de mudança no mundo e em diversos países em particular. O grau de profundidade dessas mudanças ainda é incerto, mas, salta aos olhos como as economias capitalistas que se orientam pelo pensamento neoliberal, no centro e na periferia, demonstram total incompetência em lidar com a crise. Por outro lado, experiências não-capitalistas apresentam resultados muito mais satisfatórios no combate ao vírus.
Os primeiros casos da covid-19 surgiram na China no final de 2019. O gigante asiático sofreu o “elemento surpresa”, mas, rapidamente, mostrou uma capacidade colossal de mobilização de recursos humanos e materiais para debelar a crise. O mundo assistiu estupefato quando os chineses ergueram hospitais em poucos dias e como conseguiram isolar a província de Hubei do restante do país. Com um território continental e a maior população do mundo (mais de 1,3 bilhões de pessoas) é incrível como o vírus não se espalhou para o restante do país e contaminou, até meados de abril, apenas 82 mil pessoas. Milhões de vidas foram salvas por essas ações, dentro e fora da nação asiática.
A estratégia chinesa foi tão eficaz que ganhou até um novo termo/conceito: “supressão”, a capacidade de identificar 100% das pessoas infectadas, colocá-las em quarentena total, e com isso, eliminar o vírus, mesmo sem vacina ou remédio. O sucesso chinês se explica por uma eficiência estatal e adesão popular a um projeto nacional e revolucionário. Os relatos dão conta de algumas ações: além do trancamento total (lockdown) das áreas que apresentaram casos – isolando-as do restante do país, foram feitos testes em massa e o “rastreamento do vírus”. Essa é uma medida importantíssima, pois, com a alta testagem é possível identificar os doentes e traçar todos os contatos que eles tiveram com outras pessoas, que são procuradas pelas autoridades e igualmente testadas.
Trata-se, literalmente, de traçar toda a linha de contágio e identificar a totalidade das pessoas infectadas – uma tarefa hercúlea, somente possível em situação de quarentena total, um Estado que esteja a serviço de toda a população (e não de uma minoria endinheirada, segura da doença em suas mansões) e a concordância dos cidadãos em ajudar.
Esse último ponto é vital para entendermos o sucesso das experiências não-capitalistas no embate contra o coronavírus. O governo e o Partido Comunista da China utilizaram os núcleos de bairro, organizações de base da política do país, para, de forma voluntária, fazer o controle de casos porta a porta, rua a rua. As pessoas que aparecem nas fotos medindo a temperatura de outras não são policiais, mas sim, gente comum, cada uma responsável pela sua comunidade. Há também a figura de “tutores”, que ficam responsáveis em condomínios por tirar o lixo e levar os pedidos de comida dos moradores, para que esses sequer saiam de seus apartamentos e evitem contatos com terceiros. As autoridades nomearam a empreitada de “guerra popular contra o vírus”, que remete ao imaginário do país e mobiliza a população, transformando cada cidadão em um combatente disciplinado no esforço coletivo.
Seguindo as orientações chinesas de testes em massa, rastreamento do vírus, entre outros apontamentos, os demais países não-capitalistas também vêm apresentando sucesso contra a pandemia. Não é novidade a qualidade da medicina cubana, tampouco seu ato solidário de enviar médicos a outros países. No plano interno, o governo da ilha prontamente isolou turistas, converteu hotéis em espaços de tratamento dos doentes e até aceitou o atracamento de cruzeiros com infectados a bordo, ação solidária negada por outros países. Os médicos cubanos presentes em outros países se somaram aos esforços contra o coronavírus e mais levas foram enviadas para os quatro cantos do mundo. É de fabricação cubana um dos remédios mais eficazes no combate ao vírus, o Interferon Alfa 2B, largamente usado na China, que possui uma joint venture com a ilha caribenha para a produção desse e outros medicamentos. Tudo isso embargada, cercada e impedida de fazer diversas transações internacionais devido ao criminoso bloqueio imposto pelos Estados Unidos.
Vivendo os mesmos ataques do imperialismo norte-americano está a Venezuela. Não foram poucos os que disseram que a pandemia do coronavírus seria “o golpe final” na falida economia do país. Mais uma vez, se enganaram. Recebendo não só doações de insumos de saúde, mas também, orientações sanitárias da China, o governo de Nicolás Maduro foi um dos primeiros a decretar quarentena total e a fazer testes em massa. O resultado é evidente nos boletins da Organização Mundial da Saúde: baixíssimo número de casos (menos até que o Uruguai, país com população 10 vezes menor do que a venezuelana) e a maior quantidade de testes realizados entre todos os países sul-americanos.
Tal como no exemplo chinês, a organização popular é primordial, assim como a ação do Estado que prioriza os trabalhadores. Maduro imediatamente assumiu o pagamento de salários da iniciativa privada, proibiu demissões, distribuiu bônus na conta bancária de todos os venezuelanos cadastrados na eficiente rede de seguridade social venezuelana (Sistema Pátria), entre outras medidas. A população, organizada desde os bairros, converteu a produção das comunas (entidades territoriais de produção e serviços geridas autonomamente pelas comunidades) para a confecção de máscaras, insumos hospitalares, além dos alimentos básicos. Se incrementou os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAPs), distribuição socialista de cestas básicas financiada pelo governo e realizada por meio dos comitês de bairros, com participação direta de moradores e organizações políticas.
Até a odiada e isolada Coreia do Norte parece lidar com a crise melhor que o mundo capitalista. Sendo sua principal ligação com o mundo a China, local de origem da pandemia, o governo de Kim Jong Un não perdeu tempo e fechou todas as fronteiras desde o início do ano e assim deve permanecer por um bom tempo. Até o momento o país registra zero casos. Isso não quer dizer que as autoridades estão paradas: Kim já alertou a população sobre o perigo, um mega hospital vem sendo construído em Pyongyang e máscaras de proteção já viraram adereço normal no país.
Na Índia, o estado de Kerala, governado há décadas por forças comunistas, garantiu renda básica à toda população, investiu maciçamente em saúde e concedeu crédito a pequenas empresas (maioria esmagadora dos negócios na Índia). O estado de Kerala, no extremo sul do país, registra taxa de recuperação de 84% dos doentes - a maior de todo o país.
O que há de comum nesses exemplos?
Primeiramente, são economias planificadas e geridas para o bem-estar da população. Não existe o falso dilema entre “salvar a saúde ou a economia”. A economia é composta por seres humanos, e ela não estará bem se estes estiverem doentes e morrendo.
Com a orientação do poder público (seja diretamente, via propriedade estatal, seja nas diretrizes de produção colocadas para cada tipo de propriedade: privada, estatal, cooperativa, mista, etc) a alocação de recursos materiais e humanos é muito mais rápida e eficaz. É por isso que grandes hospitais são levantados em uma semana, empresas convertem suas plantas de produção para insumos médicos, o abastecimento não é prejudicado e as condições econômicas para que todos, sem exceção, possam realizar a quarentena são possíveis.
Ao mesmo tempo, a capacidade de mobilização popular no esforço de combate à pandemia desnuda muitas das falsidades disseminadas pela grande imprensa capitalista sobre esses países. É a mobilização de base dos cidadãos que garante o controle da doença, que não deixa as pessoas serem tomadas pelo medo e que garante o abastecimento dos insumos básicos. Onde o capitalismo enxerga “ditadura”, se vê democracia de base; onde o individualismo enxerga “opressão ao indivíduo”, se vê responsabilidade coletiva; onde o “mercado” vê retenção de lucros da “livre” iniciativa, se vê uma economia a serviço de todos e não do 1%.
Enquanto isso, no Ocidente capitalista e “democrático” assistimos a um bate-cabeça sem fim.
Mesmo com a China tendo conseguido confinar a doença dentro de seu território por cerca de dois meses, ninguém se preparou. O resultado é assustador. As maiores economias do mundo contam os corpos na casa das centenas por dia (milhares, no caso dos Estados Unidos); há roubo de materiais médicos, com países confiscando em aeroportos máscaras, luvas e respiradores que iriam para outros destinos; a total incompetência da União Europeia em traçar uma política de saúde continental, expondo a farsa do bloco, que só existe para o livre trânsito de capitais; chegando às raias da cretinice total do negacionismo da doença e do racismo contra chineses, exposta principalmente pela extrema-direita.
Nada é mais representante do capitalismo neoliberal do que o relato da região italiana de Bérgamo, uma das mais afetadas no mundo, onde “os caminhões se enchiam de cadáveres, mas as fábricas não fechavam. Proprietários das indústrias também eram acionistas de planos de saúde privados”.
Dois fatos são muito sintomáticos nessa conjuntura: primeiro, o corte das contribuições norte-americanas à Organização Mundial da Saúde (OMS), anunciado pelo presidente Donald Trump em meados de abril. Tal ato escancara a incapacidade que os Estados Unidos apresenta de manter sua hegemonia, já que viola o preceito básico dessa condição: apresentar seu interesse particular como interesse coletivo.
Ao que parece a “coronacrise” é o ponto final da hegemonia estadunidense, já em decadência há algumas décadas, e a entrada no período que a teoria do sistema-mundo chama de “caos sistêmico”, momento de conflito generalizado, sem hegemonia clara.
Em segundo lugar, o desembarque de médicos cubanos (na maioria negros, vindos de um país da periferia, satanizado pelo capitalismo internacional) na Itália, país do “Primeiro Mundo”, evidencia não só a pauperização generalizada da humanidade, inclusive nos países centrais, fruto de meio século de neoliberalismo, como é um forte golpe no etnocentrismo ocidental-capitalista, que se manifesta muitas vezes por meio do racismo e da xenofobia.
A “coronacrise” marcará a humanidade para sempre, mas ela não significa que o capitalismo será superado posteriormente à sua passagem. É necessário um sujeito revolucionário coletivo que o derrube. A pandemia pode ser sim, e provavelmente será, um momento de conscientização de numerosas frações da humanidade de que esse sistema precisa ser superado, pois seu processo de mercantilização da vida fez esta descartável.
A tal “eficiência” do privado e a “tecnicidade” da economia neoliberal não conseguiram sequer distribuir máscaras de proteção para todos (vejam só, indústria têxtil, a primeira da história da Revolução Industrial!). O fascismo, a quem amplos setores “esclarecidos” das classes médias ocidentais e latino-americanas se entregaram nos últimos anos desejando “proteção”, deixa as pessoas para morrer enquanto procura inimigos imaginários para culpar. Um lema da esquerda mundial no início do século dizia que “um outro mundo é possível”. Pois bem, agora ele se tornou necessário.
*Roberto Santana Santos é Doutor em Políticas Públicas e Mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é professor da Faculdade de Educação da UERJ e Secretário-executivo da REGGEN-UNESCO.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Mariana Pitasse e Camila Maciel