O escritor uruguaio Eduardo Galeano publica em 1995 o texto “Futebol ao Sol e a Sombra” com uma preocupação pertinente para a virada do século: o espetáculo com poucos protagonistas e muitos espectadores atrofia a fantasia e a ousadia do futebol. E esse foi o processo de modernização do futebol.
Se durante a Segunda Guerra Mundial e a gripe suína de 2009, as atividades apenas foram paralisadas, o futebol pós COVID-19 parece deixar uma grande incógnita para os amantes do futebol. De acordo com a empresa de eventos esportivos Vale Sports, 17% dos clubes brasileiros perderão seu faturamento por completo nessa temporada. A quebra vai dos patrocínios à bilheteria. E lá vai o Estado novamente salvar quem vive sonegando suas obrigações.
As casas de apostas já sentem o impacto e os indivíduos que vivem do endividamento alheio não sabem como lidar em meio a esse colapso. A partida zero da pandemia ocorreu entre Atalanta e Valência, dia 19 de fevereiro, no San Siro, em Milão, pela Liga dos Campeões. O clube espanhol além da derrota por 4 a 1 para o time italiano, teve outra grande perda: 30% dos seus jogadores testaram positivo para coronavírus. Foi aí que ficou claro o lado da ganância que o futebol moderno apresenta: o jogo foi um laboratório, um teste para as entidades que tomam conta do futebol europeu.
O espetáculo assistido por 45 mil pessoas no estádio San Siro trouxe problemas inestimáveis. Tudo em nome do lado “a Sombra”, sabiamente criticado por Eduardo Galeano. A ganância substituiu a arte em nome da “telecracia”: “Hoje em dia, o estádio é um gigantesco estúdio de televisão. Joga-se para a televisão, que oferece a partida em casa. E a televisão manda”, afirma Eduardo Galeano em “Futebol ao Sol e Sombra”.
Que possamos aprender com a pandemia que a arte do futebol precisa ser resgatada. O futebol pode gerar, emprego, renda e espetáculos. Mas não pode colocar o lucro em detrimento daqueles que amam o futebol. Eduardo Galeano se achava um mendigo que ia de estádio em estádio suplicando por jogadas magistrais e dribles desconcertantes. Hoje o mendigo não entra nem no perímetro que isola o estádio daqueles que não possuem ingresso.
A história do futebol passa por uma triste transição do prazer ao dever. Que possamos resgatar o prazer de jogar, apenas pelo prazer de estar ali, dentro de campo, como se fossemos uma criança que brinca e que também leva a sério cada segundo da brincadeira, como se nada mais importasse.
*Agenor Florêncio é cientista social, professor e zagueiro.