O Brasil parou na noite da segunda-feira (27) para assistir à final do Big Brother Brasil (BBB20) e à vitória de Thelma Assis, uma médica negra. Em tempos de crise sanitária mundial com a pandemia do coronavirus, o programa ocupou boa parte do entretenimento nas casas brasileiras e nas redes sociais, substituindo partidas de futebol e novelas.
Esta edição, ao contrário das demais, contou com um elenco composto por pessoas famosas e inscritas. Os grupos divididos nas categorias “pipoca” e “camarote” evidenciavam uma desigualdade de performance, uma vez que famosos contabilizavam milhões de seguidores na internet. Boa parte do grupo de anônimos desacreditou de sua própria vitória na competição diante deste cenário, mas Thelma foi assertiva: “não tenho medo de nenhum deles”. E com 44,1% dos votos ela se consagrou campeã.
No início de sua trajetória, Thelma se aliou à “comunidade hippie”, da qual faziam parte as autodenonominadas “fadas sensatas”. Com elas, encampou a luta contra o machismo e a misoginia que testemunhamos nas primeiras semanas do reality. No entanto, com a chegada dos participantes da casa de vidro, sua trajetória sofre uma reviravolta. Isso porque suas amigas “fadas sensatas” começam a priorizar a dupla que trouxe informações externas, isolando Thelma.
O fator decisivo desse racha foi o castigo do monstro dado por Daniel e Ivy para a campeã. Lembro de ter ficado chocada com a escolha deles, duas mulheres negras [Thelma e Flayslane], porque o castigo implicava que elas ficassem em um tipo de jaula. Ali, muitas mulheres negras se reconheceram no choro de Thelma. Um choro que nos traz a memória de quem é deixada para trás no primeiro momento, de quem é a primeira a ser isolada. E quantas de nós, mulheres negras, já passamos por esse sentimento de não pertencimento? De pensarmos que fazíamos parte de grupos dos quais, na prática, nunca fizemos. E é o que essa sociedade nos diz todos os dias. Mulheres negras ainda estão na base da pirâmide social.
Durante a temporada, muitas foram as controvérsias e temas levantados desde o machismo, o classismo, passando pelo alcance das diversas mídias digitais e suas possíveis conexões com a TV aberta. Mas, uma delas podemos dizer que nunca fora nomeada abertamente pelos participantes: o racismo, palavra proibida pelo BBB. A palavra circundou o ambiente de forma velada, seja no isolamento de Thelma e nos conflitos que ela enfrentou dentro da casa, ou pelas dinâmicas dos programas ao vivo quando Thelma foi repetidas vezes taxada de planta por outros participantes. Também por conta da imagem construída de Babu como uma pessoa violenta e perigosa.
A vitória de Thelma é um projeto de vingança à edição passada que destilou racismo do início ao fim. O BBB, como pesquisa de opinião anual que reflete as preferências de milhões de brasileiras e brasileiros, nos fornece retratos sobre tendências de posicionamento coletivo acerca de participantes que representam imagens de setores e grupos da sociedade. Quando falamos de grupos como as mulheres negras ou pessoas LGBTI+, essa representatividade vira bandeira. Assim foi com Jean Wyllys, em 2005, e com Thelma Regina, na noite de ontem. Sua vitória tem jeito de esperança de que atitudes, ora naturalizadas, sejam expostas em seu caráter intolerável, inegociável e abjeto.
Obviamente existem também tensões acerca da tática escolhida pela emissora esse ano que pretendeu, de alguma forma, afirmar que seu poder não se perdeu para as redes sociais. Que a influência digital não é maior que a influência da TV aberta e, com isso, consolidar uma estratégia de convergência ainda mais forte. Nas redes sociais, o clamor era pela vitória das “fadas sensatas” que contavam com mais poder econômico e capital simbólico do que Thelma. Sua vitória se dá também sobre o feminismo branco e liberal que permanecerá endossando segregação enquanto não compreender a absoluta necessidade de que as mulheres negras sejam protagonistas, donas de suas narrativas e vozes, vitoriosas referências.
A vitória de Thelma não foi só entretenimento. Foi demonstração de força de transformação em um Brasil com tantas derrotas sociais. Se hoje percebemos tantas e tão rápidas mudanças em nossas vidas diante da pandemia, podemos acreditar que neste ano que separa a última edição do programa e a eleição do atual presidente, os ventos da história não pararam de soprar. Essa esperança precisa organizar a nossa ação coletiva de transformação. O nosso tempo chegará. Chegará o tempo em que esses ventos soprarão a nosso favor.
Ao ouvir o anúncio de sua vitória, Thelma gritou: “obrigada, mamãe”. Em seguida, em uma entrevista, a mãe de Thelma destacou: “sabe que sua mãe sempre acreditou em você. Eu acredito em você". Thelma responde: “a gente vai ser muito feliz”. E, aos prantos, eu me recordei do livro de Maya Angelou “Mamãe & Eu & Mamãe” que traz em um dos trechos “o amor cura e liberta”. Foi, e é o amor entre mulheres negras que nos move. Mulheres negras felizes são a revolução que queremos e precisamos urgentemente.
*Camila Marins é jornalista e uma das editoras da Revista Brejeiras
Edição: Rodrigo Chagas