A situação nacional poderia ser resumida de muitas maneiras, imagens e metáforas. O que não nos falta são evidências e fatos para demonstrar que estamos em uma profunda crise e com perspectivas nada otimistas. Mas essa crise é reveladora, seu agravamento é um consenso e os desafios para resistir a essa múltipla crise e ameaças é um dos grandes temas do debate político.
É sempre bom lembrar que nas situações de crise as forças políticas e sociais se agitam e movimentam; fissuras antes obscurecidas saltam aos olhos; divergências no bloco governista ganham outras dinâmicas.
O desfecho desse processo dramático dependerá de muitos fatores, dentre eles de como os setores progressistas atuarão nela, basicamente buscando se reposicionar como força, resgatando sua relação com a sociedade, especialmente com os setores das classes populares urbanas, o campesinato e os trabalhadores em geral. Comparar a uma guerra talvez seja impróprio, mas nada mais fácil para delimitar os contornos dos desafios das próximas semanas e meses.
O quadro trágico é inédito em 100 anos e a ameaça a vida alcança a todos, sem distinção, embora a condição social seja determinante para a possibilidade de sobrevivência. Essa ameaça generalizada coloca a possibilidade da morte ao alcance de qualquer pessoa. Esse quadro ainda tem a dramaticidade da perspectiva de colapso do sistema de saúde, uma realidade em algumas regiões. É dizer: colapsar o sistema é algo que somente nas situações de guerra, fenômenos especiais da natureza ou na ficção figuraria como uma possibilidade. Isso é um quadro em perspectiva e absolutamente sem dramatização.
::De onde tirar o dinheiro para pagar a conta da crise::
O pânico com as medidas de isolamento e quarentena tem como pano de fundo um fantasma: a paralisação da produção e circulação, algo assemelhado a uma greve geral, que, guardadas as devidas proporções, e também é reveladora. A interrupção de parte da produção e circulação para salvar vidas é diariamente alvo de ataques pedagógicos. Os defensores do fim das medidas de restrição a circulação chegam as raias do absurdo de advogar por teses sobre o isolamento como causa de agravamento, como histeria, populismo, coisas de comunista, vagabundagem e outras abundam as redes sociais. Parte das associações patronais dos setores de serviços, varejo e industria também apoiam, ao mesmo tempo que buscam alguma retaguarda com o Estado. E a grita era uma só: o Brasil não pode parar. Para esses setores o temor “greve” se mostrou superior a da ameaça a vida.
Um componente adicional também merece destaque. O debate sobre a economia e o Estado normalmente é dominado pelos liberais (que se lembram que o Estado moderno é uma criação liberal) e se batem com os liberais desgarrados, ou neoliberais, ultraliberais, etc, que costumam tratar o Estado como uma criação dos “estatistas” e dentre eles os comunistas. Os defensores da necessidade de redução do papel do Estado na economia, de privatizar tudo, e nos primeiros dias da crise mudaram o discurso clamando por intervenção do Estado na economia. Mais Estado, mais proteção, mais segurança. Os velhos arautos do neoliberalismo saíram aos gritos pedindo flexibilização das regras da criminosa lei de responsabilidade fiscal e da mortal regra do teto de gastos públicos: na crise vale tudo. Aquela velha mania de fazer sempre uma associação do estado como economia caseira, o orçamento público como as contas de uma família e a dívida como uma deformação moral de um povo desapareceu do debate. Estão acanhados.
Mais um aspecto revelador é sobre a situação social do nosso país. Com uma classe dominante bem habilidosa no esforço de esconder seus traços anti-populares, anti-democráticos e anti-nacionais, com a crise perderam o discurso e deixaram tudo muito mais as claras. A crise ajudou a desvelar as posições seculares e a primeira evidencia foi com o debate sobre a prioridade na crise, se a vida ou a economia. Esse debate contém uma presunção de que o povo seria incapaz e diante de tamanha ameaça a vida como essa simplesmente voltaria ao trabalho, ao consumo e a normalidade apenas com uma orientação dos governantes de turno e dos patrões É um menosprezo a capacidade de compreender o grau de ameaça a vida. De todos. Além disso, esse tema revela o quanto esse setor é estupido ao fazer um debate em público que apenas demonstra o quanto é irresponsável, inconsequente, mesquinho e sem projeto nacional, como bem nos alertou o mestre Darcy Ribeiro há mais de duas décadas.
Os autores de ficção sempre vão longe, mas poucos alcançaram uma cena como a que estamos vivendo. Distopia é pouco. Provavelmente é a primeira vez em um século para o Brasil em que o medo chega ao conjunto da sociedade. O medo é acompanhado pela desinformação das formas de contágio, sintomas, e o que predomina é um sentimento impotência. Se a chegada da covid-19 foi aos poucos, com mais piadas do que preocupação, com um rosário de besteiras ditos por autoridades em rede nacional, as últimas três semanas foram de pânico e desespero. A questão da vida em primeiro lugar ganhou o debate e não tem medida capaz de reverter a insegurança baseada na realidade da pandemia.
O capitalismo na sua fase atual, da arrogância, soberba e o anúncio aos quatro ventos de que não há alternativa, debatendo sobre chegar em Marte, a inteligência artificial, mapeamento do genoma, etc. e a crise da covid-19 colocou tudo a nu: faltam ventiladores para os equipamentos de respiração mecânica, máscaras e álcool gel. O “rei está nu”.
A crise da pandemia também revitalizou o nacionalismo burgues expansionista impulsionado pelo Trump, no oposto também evidenciou a alternativa com Venezuela, Cuba e Argentina, e o “nacionalismo” anti-nacional e subalterno do Bolsonaro. O nacionalismo do Bolsonaro é vassalo, subalterno e bate continência para os EUA em tudo. A humilhação com a disputa dos insumos e equipamentos seguida da votação que exclui o Brasil da cooperação com a medicação para a covid-19 são os últimos episódios dessa política neocolonial.
Anida nas lições é importante destacar o quanto o campo político em torno do astrólogo Olavo de Carvalho está em queda livre e desmoralizados. Anticientífico, adepto de teses como a de que a OMS é um aparelho chines e a covid-19 uma arma de guerra contra a liberdade, esse campo está em declínio e mostrou que as posições cavernícolas são muito mais do que um folclore. São uma ameaça à vida, à civilização e ao debate. Esse campo está se desidratando e a crise só jogou luz nas posições atrasadas e vergonhosas.
::Ou o socialismo derrotará o piolho ou o piolho derrotará o socialismo::
O último tema que a crise ajudou a evidenciar é sobre os problemas sociais brasileiros. Sabemos que são seculares, de origem no escravismo colonial e tardio, com a pior desigualdade social do planeta se observado nossa dimensão. Uma vergonha que sempre é naturalizada, quase como uma característica do Brasil, algo do destino ou natural. A crise iluminou essa vergonha nacional e ajudou a demonstrar o quanto temos setores que tratam disso como quem descreve uma vegetação ou relevo. Tá ali, é assim mesmo, segue a vida. A ameaça da covid-19 é desigual para a população e a ampla faixa dos setores populares não podem fazer isolamento nos termos propostos, ou não possui renda para sobrevier o quanto for preciso. O Estado foi forçado a reagir e a todo tempo faz um discurso como se as migalhas fossem salvar essas vidas, que por sua vez deveriam ser eternamente gratas.
A naturalização tem um aspecto ainda mais trágico que é a naturalização da nossa condição colonial. Uma nação que não tem projeto busca construir uma ideia de futuro como uma continuidade do presente, ou olhando no retrovisor, como se pudéssemos enfrentar os dilemas nacionais nos associando de maneira subalterna aos EUA. Casuísmo, irresponsabilidade e uma prova a mais de que temos uma classe dominante ideologicamente subalterna e submissa, além de iletrada e parte dela anti-científica. O vírus só tornou esse quadro mais claro e dramático.
*Ronaldo Pagotto (@ronaldopagotto) é advogado e integrante da direção nacional da Consulta Popular.
Edição: Rodrigo Chagas