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Os remédios e a história

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Anúncio de 21 de outubro de 1918 no jornal carioca Correio da Manhã; - Reprodução / Correio da Manhã
Entender a história das doenças e dos remédios nos faz abrir perspectivas e pensar criticamente

Muitas foram as pestes que mataram milhões de pessoas na história da humanidade. E muitos foram os remédios tentados para salvar as pessoas. A medicina se transformou ao longo de séculos, descobriu micróbios, vacinas, o funcionamento celular, o DNA e muitas outras coisas que ajudaram a curar gente. Mesmo assim, antigas práticas se perpetuam em novos remédios em novas pandemias.

Ainda vivemos a pandemia do novo coronavírus e eu ainda não consigo mudar de assunto. Na última semana, o presidente dos Estados Unidos Donald Trump sugeriu que se ingerisse ou injetasse Lysoforme como uma das maneiras de se curar a doença. Mesmo com a recomendação expressa de vários médicos, algumas pessoas tentaram o procedimento.

A fala de Trump mascara a falência no uso da cloroquina, que parece estar matando muitos pacientes. Historiadora, eu fico tentando entender o papel dos remédios na história e a maneira como se construiu a ciência e o charlatanismo.

Como nasceu a ideia de remédio? O que era considerado um remédio? Qual o papel dos alimentos na constituição dos remédios e das curas? Quem podia curar?

É uma discussão longa e complexa e aqui vou apenas dar algumas pinceladas para tentar entender o papel dos remédios no tratamento do que se costumava chamar de “pestes” mas hoje chamamos de “pandemia”.

A historiadora Juliana Schimitt, que estuda a morte em suas pesquisas, lembra que durante a peste de 1348, o rei da França, Filipe VI, recorreu à Universidade de Paris, que lhe ofereceu, com seu célebre Compendium de Epidemia, seu conhecimento sobre o tema.

“Acreditava-se que a peste ocorria por causa da contaminação do ar – provocada, por sua vez, por uma má conjunção dos planetas. Naquele mundo, em que o conhecimento médico básico vinha das obras de Hipócrates e Galeno, a teoria “aerista” era a base de todas as recomendações para a prevenção”, diz a historiadora.

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Existiram diversos tipos de pestes: peste bubônica, peste estilo influenza e muitas outras. Elas eram tratadas da mesma forma. A maioria acreditava que as pestes eram castigos divinos então o remédio deveria ser o jejum, a reza, a expiação dos pecados e dos pecadores.

Se todos colaborassem, a peste iria embora. Como as doenças virais tem ciclos, as pestes acabavam uma hora, quando todos acreditavam que Deus teria aceito os sacrifícios e voltado a ser bom e piedoso. Então o primeiro remédio que se buscava era o perdão divino.

Foi um enorme avanço quando se passou acreditar que era o ar pestilento que contaminava os doentes – o que nem sempre era verdade, como sabemos foi o caso da peste bubônica. Mas a purificação do ar, com fogueiras, com ervas aromáticas, com as máscaras dos médicos que mais contavam os mortos do que curavam, foi uma espécie de remédio, destinado a curar a população infectada.


Médico no século XVII: o olfato era um sentido que se valorizava nessa época em que se acreditava que o ar pestilento transmitia as doenças e o bico do uniforme era preenchido com ervas aromáticas / Ilustração - Acervo Joana Monteleone

Isso teve uma permanência enorme na prática médica, mesmo depois de descobertas as bactérias e os vírus. No filme A morte em Veneza, baseado na obra-prima de Thomas Mann, dirigido por Luchino Visconti, a cidade italiana sucumbe lentamente à cólera.

Em várias das esquinas venezianas são acesas fogueiras para espantar o peste que matava os moradores. A fumaça aparece em muitos momentos do filme, que se passa no começo do século XX.

Outra ideia muito comum de cura dos doentes durante as pestes estava relacionada à alimentação. Na verdade, até a descoberta dos micróbios, a medicina estava intimamente ligada à alimentação. Foram escritos muitos tratados sobre como e o que comer para viver mais, desde que os primeiros livros de receitas foram impressos.

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É um segredo dos historiadores da alimentação procurar receitas antigas em tratados médicos. Os alimentos tinham propriedades, muitas que conhecemos até hoje, como laxantes, purgantes, antibióticos naturais.

Em 1534, o estudioso inglês Thomas Elyot publicou um livro chamado O Castelo da Saúde. Acreditava-se então que as doenças eram causadas por miasmas, então banhos quentes abriam os poros, que facilitava a entrada de miasmas maléficos. A doença era vista como um desequilíbrio do corpo.

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Na cidade de Florença, no final da Idade Média, em uma das muitas pestes que assolaram a cidade, os médicos acreditavam que esse desequilíbrio corporal era causado pelo contrate entre quente e frio, que deveria ser reequilibrado.

E isso nem sempre precisava ser feito com remédios orais – a cura envolvia todos os sentidos. Com isso, para curar um doente com febre, o médico mostrava uma espécie de sorvete gelado, que ele mesmo, médico, tomava. O doente era curado pela visão do gelado.

Durante a pandemia de Gripe Espanhola em 1918, um dos sintomas mais notáveis era febre. Já se conheciam os micróbios e as maneiras de combater as gripes e epidemia. O quinino, então usado pra malária e suas febres, passou a ser um tratamento recomendado para os doentes.

O quinino foi usado indiscriminadamente, matando muitos doentes por complicações de seu uso. A ideia, portanto, de se usar quinino e seus derivados para curar doenças infecciosas também tem um precedente e uma história. Dessa maneira, entender a história das doenças e dos remédios nos faz abrir perspectivas e pensar criticamente no que está acontecendo agora.

 


 


 

Edição: Leandro Melito