Em meio à pandemia mundial de covid-19, temos vivenciado as consequências do afrouxamento das medidas de distanciamento social em diversos países. O Brasil já desponta como uma das maiores taxas de contágio por coronavírus do mundo, em que um infectado transmite o vírus para mais três. Ao mesmo tempo, segue sendo reforçado de maneira uníssona por todos os setores da classe dominante o culto ao trabalho e a propaganda massiva de necessidade de retorno das atividades como única saída.
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A ausência de medidas concretas suficientes para tornar possível uma adesão efetiva ao isolamento é chancelada por todas as frações da burguesia no país. Um dos seus representantes, o bilionário Jorge Paulo Lemann — controlador da AB InBev, Kraft Heinz e Burger King —, afirmou inclusive que momentos como este podem trazer grandes oportunidades.
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O valor atribuído ao trabalho se alterou ao longo da história. É importante entendermos como os diversos fatores que permeiam este transformação refletem os projetos da classe dominante para explorar cada vez mais os que fornecem a força de trabalho no país e no mundo.
Somos parte de uma formação social que carrega em sua trajetória cerca de quatro séculos de relações de trabalho baseada no escravismo. Isto por si só já é o bastante para refletirmos como a passagem às formas em que predominam a compra e venda da força de trabalho, se constituíram de maneira bastante própria ao caráter não clássico de desenvolvimento do modo de produção capitalista em terras brasileiras.
Somos parte de uma formação social que carrega em sua trajetória cerca de quatro séculos de relações de trabalho baseada no escravismo.
Modernizar sem romper
Por conta da nossa experiência colonial, a sustentação de longos anos de expropriação e violência contra a classe trabalhadora teve sua gênese através de uma estrutura escravocrata que se modernizou sem rupturas completas com estas bases fundamentais.
Foi preciso atribuir outros sentidos ao trabalho. Não poderia se tornar hegemônica a concepção de que é através dele que todos os seres humanos movimentam a sociedade e ao mesmo tempo transformam a si mesmos em um processo cujo motor são as necessidades e possibilidades concretas da vida humana.
Um dos instrumentos fundamentais das guerras de conquista foi a subjugação completa dos povos originários de nosso território e daqueles trazidos dos demais continentes colonizados. Todos os seus modos de vida e consequentemente de trabalho passaram a ser apropriados e direcionados a sustentar os padrões de exploração da classe dominante.
Sentido do trabalho
Nesse cenário, o trabalho significava necessariamente uma tarefa negativa, não humana. O simples fato de trabalhar remetia diretamente a mais baixa colocação naquela estratificação social do Brasil colônia. Mais tarde, na complexa passagem para formas predominantemente salariais de expropriação do trabalho, o valor atribuído a este ato fundante de todos os seres sociais passa a ser alterado.
É preciso que quem trabalha, além de somente sobreviver, possa e deva comprar produtos. O trabalho passa então a ser sinônimo de dignificação e cidadania. Na construção desse valor estará embutida a justificação para que uma pequena minoria torne atrativa a condição de exploração em que se encontra a classe que sustenta o mundo.
É preciso que quem trabalha, além de somente sobreviver, possa e deva comprar produtos. O trabalho passa então a ser sinônimo de dignificação e cidadania.
Essa ideologia é responsável por mover e justificar a existência de todo um aparato organizado para impedir a revolta da classe trabalhadora aprisionada a uma relação em que é obrigada a vender a única coisa que lhe restou, a força para trabalhar.
Os apelos assassinos de manutenção plena das atividades econômicas em meio a um estado de calamidade cuja taxa de óbitos já ultrapassa os cinco mil casos não devem causar surpresa se verificarmos quem é a sua base de sustentação e sua forma de agir ao longo da história.
Clóvis Moura, um dos nossos grandes intelectuais, já disse que é preciso lembrarmos como o povo brasileiro criou a história trabalhando e lutou contra os níveis de exploração sucessivos que apareceram. Nessa longa trajetória, segue sendo os que trabalham a força capaz de alterar os rumos dessa lógica que mantém o trabalho à serviço da exploração.
*Júlia Duarte é advogada popular e mestranda em Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica pela UFPE.
Fonte: BdF Paraíba
Edição: Heloisa de Sousa e Vivian Fernandes