Na pandemia, militares assumem o passivo de milhares de óbitos já acontecidos e por acontecer
Há muitas perguntas sem respostas no Brasil de 2020 mas vale apostar que uma delas é “Como os militares estão vendo tudo isso?". No século 21, a ciência política afastou sua lupa dos quartéis. E a imprensa empresarial que, sob a ditadura de 1964, mantinha até setoristas na caserna buscando saber para qual lado soprariam os ventos, deixou de observar os fardados.
Com a democracia, eles saíram de cena, legando os holofotes para os protagonistas civis. Não se imaginava que voltariam à ribalta até porque sua trajetória de 21 anos de poder, aberta com tanques e fanfarras, acabou pifiamente, a bordo de uma inflação de 230% ao ano e com a imagem das três forças emporcalhada por prisões, tortura e assassinatos.
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Mas estão de volta com Bolsonaro para comandar escrivaninhas. O que pretendem? Não se sabe. Sob o autoritarismo, dentro do uniforme havia nacionalistas.
De direita, porém gente que tinha um projeto para o país. O conservadorismo não a impediu de gestar uma política externa independente nos anos 1970, abrindo mercados na África e países árabes, descolando-se ideologicamente do fascismo português para apoiar as novas nações como Angola e Moçambique e reconhecendo a China de Mao. Hoje, não há nada.
No início de 2019, presumiu-se que os generais seriam um elemento de moderação da insânia presidencial. Bastaram alguns meses para a avaliação se dissipar, torpedeada pelos escrachos do clã familiar e do filósofo da corte.
A resposta mais prosaica é que simplesmente atenderam ao convite do ex-tenente que planejou explodir bombas nos quartéis e que Ernesto Geisel chamava de “mau militar”. Sentiram-se confortados e confortáveis com o naco de poder que passaram a degustar e, especialmente, o novo e bem nutrido contracheque ao final de cada mês.
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Qual será o custo dessa aventura para a instituição militar? No passado remoto, o exército marchou contra os caboclos visionários de Canudos e do Contestado. Não são suas páginas mais nobres. No passado recente, requisitou os préstimos do delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury.
Bajulado pelos generais, Fleury aplicou a tecnologia de produzir cadáveres desenvolvida pelo Esquadrão da Morte. Tornou-se o brinquedo assassino das forças armadas. O resultado é que, perante a história, o torturador e seus mandantes estão definitivamente misturados.
Agora, no respaldo a Bolsonaro, repetem as más companhias. Perfilam as milícias, as rachadinhas, as fake news e o escritório do crime. Perante a violência oficial ou oficiosa, expelem uma nota incoerente em que se afirmam ao lado “da democracia e da liberdade”.
Não dizem mas permanecem com o presidente. É um problema porque até as carpas do Palácio do Planalto sabem que Bolsonaro nada tem em comum com “democracia” ou “liberdade” e seus atos e sua voz são as melhores testemunhas desse desdém.
Na emergência sanitária, em plena tempestade viral, os generais não pronunciam uma sílaba de contrariedade. Assumem o passivo de milhares de óbitos já acontecidos e por acontecer. Acariciam seu novo brinquedo assassino, que despreza a vida, exalta a morte e zomba da dor alheia.
Edição: Leandro Melito