Fraude

Uso de CPF do filho por pais impede que mães solo acessem auxílio emergencial

Se comprovado que o recebimento da renda básica foi indevido, pais poderão responder por estelionato

Brasil de Fato | Belém (PA) |

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Mães precisam juntar provas materiais e denunciar o pai na Justiça - Agência Brasil

Cerca de um mês e meio depois da aprovação pela Câmara dos Deputados da lei que concede o auxílio emergencial de R$ 600, por até três meses, para as pessoas que perderam renda devido à crise econômica e sanitária agravada pela pandemia do novo coronavírus, muitos setores ainda encontram dificuldades para acessar o benefício. Um deles são as mães chefes de família e que foram vítimas de fraude por seus ex-companheiros. Para pedir o auxílio, basta a indicação do CPF da criança, mas se um dos pais se cadastrar primeiro, o outro fica impedido de obter a renda básica de R$ 1.200.

Este é o caso de Juliana Silva*, moradora de São Paulo (SP), que cuida integralmente do filho de quatro anos nesta pandemia. Ela recebe R$ 2.200 por mês como bolsa de doutorado, mas, em função da crise, não consegue outros trabalhos como professora. De aluguel, ela desembolsa R$ 900, de um total de R$ 1.600, dividindo a casa. Outras despesas são: alimentação, água, energia elétrica, gás, produtos de cuidados da criança, ou seja, o básico para garantia do bem estar dela e do filho.

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Como recebe até três salários mínimos por mês, ou seja, até R$ 3.135, Juliana tem direito à renda básica emergencial. Ao tomar conhecimento disso, ela realizou o cadastro do CPF do seu filho no sistema da Caixa Econômica Federal, mas, para sua surpresa, a inscrição já havia sido realizada. 

Pensando ser vítima de crime virtual, Juliana lembrou que há cerca de duas semanas o pai de seu filho de quatro anos pediu para ela o CPF da criança, alegando querer regularizar o plano de saúde do menino, que é pago pela avó paterna. Ela enviou o número da documentação. 


Mãe se deparou com mensagem de que o CPF do filho já está vinculado a um pedido de auxílio emergencial / Reprodução

Diante da situação, Juliana entrou em contato por e-mail com o ex-companheiro questionando se ele havia cadastrado o menino, mas ele negou. Ao entrar em contato com o plano de saúde, ela foi informada de que não há atualização de dados cadastrais com base no CPF de seu filho. 

Juliana juntou as provas e registrou um boletim de ocorrência (BO) contra o pai da criança, que poderá responder por estelionato, falsidade ideológica e até violência patrimonial. Isso porque não é a primeira vez que ele causa dano a ela. Quando a relação terminou, por exemplo, ele sumiu com seu computador, prestes a ela ter que submeter um projeto para obter uma bolsa de doutorado. 

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"Eu já tive duas medidas protetivas, ele me agrediu fisicamente. Ele é super mentiroso, manipulador. Ele me pediu o CPF para poder atualizar o plano de saúde e, depois, quando eu pergunto se ele usou o CPF no pedido de auxílio, ele disse que não. Não tem outra pessoa que possa ter usado o CPF, e não tem outra razão para ele ter me pedido o CPF que não seja essa. Eu tenho o registro da conversa com o plano de saúde. Está todo mundo sem saber o que vai acontecer [diante da pandemia], e ainda tem que ficar lidando com questão jurídica", desabafa Juliana. 

O que fazer?

Analisando situações como essa, a advogada Gabriela Kermessi, que tem pós-graduação em direito da família e violência contra a mulher e há seis anos atende casos como este, afirma que o mais importante diante de uma suposta fraude é reunir provas. 

"Se ela entrar lá para fazer o cadastro e aparecer que o CPF 'x' já está vinculado a outro pedido, ou já foi utilizado em outro pedido, ela precisa dar print na tela ou imprimir. O segundo passo é questionar o pai dessa criança para tentar também formular provas, porque tudo depende de prova. Justificar por que ela suspeita que foi o pai da criança que fez esse pedido, porque quando ela for fazer o BO é justamente isso que eles vão falar: não temos certeza", detalha.

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Depois de registrado o BO, ele é encaminhado para a delegacia para que o inquérito seja feito. O cuidado com o máximo de provas resguarda a mãe, uma vez que se, porventura, não tiver sido o pai, ele ainda pode entrar com uma ação contra essa mãe. Logo, é preciso se respaldar. O mesmo é válido para qualquer caso que envolva violência doméstica. 

"A gente tem um Judiciário machista, isso não é segredo para ninguém. Temos melhoras, temos avanços, sim, mas o Judiciário é machista, mesmo não sendo juiz homem, a gente ainda pega umas juízas bem complicadas. A grande dificuldade que a gente tem é a questão da prova, porque, nos últimos dois anos, o que eu percebo é que a violência psicológica e moral é muito maior que a física. E para você conseguir dar sequência a esse tipo de violência moral e física, você precisa de provas", argumenta a advogada.  

Por fim, o último passo é procurar uma delegacia da mulher com as provas em mãos. "O atendimento não é nota mil, mas é melhor do que o de uma delegacia comum. [É preciso] explicar a situação, e explicar que quer registrar uma ocorrência para que seja investigada. Provavelmente, vai ser [considerado como] crime comum de estelionato e, dependendo do histórico dessa mãe com esse suspeito, se ficar comprovado, pode até classificar também como uma violência patrimonial". 

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A extensão do auxílio a chefes de família solteiros, independentemente do sexo, passando a incluir pais solo e mães adolescentes, ainda precisa de sanção presidencial para começar a valer, apesar do texto ter sido aprovado por parlamentares no dia 22 de abril. Na última quinta-feira (7), o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, disse à Comissão Mista do Congresso Nacional que acompanhar as medidas de enfrentamento do coronavírus que a pasta emitiu parecer favorável a essa medida.

Falhas no auxílio

O auxílio emergencial passa por diversos problemas. Há milhares de brasileiros esperando para receber o benefício. A advogada acredita que a falta de critérios facilita a realização de fraudes, entre elas, as praticadas por pais mal-intencionados. Kermessi cita como exemplo o fato de que não é solicitado que o pai envie uma certidão que comprove a guarda da criança, ou que diga que ele é viúvo e sustenta a criança sozinho, ou qualquer outro documento que comprove que ele, de fato, detém a guarda. 

"Eles quiseram fazer o correto, porque eu mesma tenho clientes homens, que são viúvos, enfim, têm a guarda dos filhos. O Brasil não conhece o Brasil. As pessoas não andam na rua, não conhecem a realidade das mães, dos pais, de ninguém. Eles quiseram se adequar aos milhares de formatos de famílias que temos hoje e acabaram abrindo essa opção para pais e mães que são chefes de famílias. Mas eu acho que em um sentido amplo o cadastro apresenta muitas falhas", avalia.

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Passo a passo caso o CPF do seu filho esteja registrado em outro CPF:

1) Faça um print (captura) da tela com a informação de que o CPF da criança está vinculado a outro cadastro;

2) Questione o pai se ele registrou a criança para receber o auxílio, gravando a conversa telefônica ou registrando por e-mail ou mensagem;

3) Ligue para o número 111 (da Caixa Econômica) e informe o ocorrido;

4) Procure a Delegacia da Mulher. Se você ganhar até um salário mínimo pode ser atendida pela defensoria pública. Se for acima de dois salários, será necessário contratar uma advogada particular e justificar por que desconfia do pai, contar se ele já tem histórico, entre outras informações.

*Nome modificado para preservar a identidade da vítima.

Edição: Vivian Fernandes