Estou em Moçambique desde agosto de 2019. Sou enfermeira e trabalho com uma ONG médica humanitária. Me apaixonei por Moçambique no ano passado, quando vim trabalhar em uma emergência após o ciclone Idai em Beira. O povo, a cultura, a língua portuguesa, a beleza das crianças!
:: Jornalista moçambicano relata situação do país, devastado pelo ciclone Idai ::
Estou vivendo nestes últimos nove meses na Província de Cabo Delgado, onde vivenciamos uma grande insegurança com um grupo de bandidos armados que atacam vilas, queimam casas, sequestram e matam pessoas. Essa situação acontece desde 2017 e pouco sabemos das motivações. O que sei e vejo é o medo e o trauma desta população. Cerca de 70% das pessoas vivem em casas locais (barro, madeira e telhado de palha ou telha), em vilas com atividades puramente de agricultura familiar. Vivem em comunidades (vilas) que giram entorno de 6-7 mil habitantes. Tem suas famílias, seus filhos, cultivam sua comida nas maçambas (nome local para as plantações) e criando animais (cabras, ovelhas e galinhas). Tem suas atividades tradicionais de iniciação, sua religião e crenças.
As crianças brincam juntas e soltas por todos os lados. A maioria das localidades possuem escola e serviços básicos de saúde e maternidade. A vida passa em um tempo que é medido pelas estações e colheitas, apesar de serviços de luz, internet e telefonia móvel ser disponível na maioria dos lugares. Os dois últimos caros e, obviamente, não acessível a todos. A água (mesmo nas grandes cidades) precisa ser coletada em poços e (quase que diariamente) precisa ser carregada na cabeça em bitoens de 10-20L até as residências. É comum vermos vilas de mulheres com suas capulanas (saia feita com tecido típico africano amarrada ao corpo e lindamente colorida) e filhos carregando água logo quando o dia nasce. Aqui o sol nasce às 4h. Essa dificuldade de acesso à água potável é responsável por algumas das doenças, como a Cólera, por exemplo. Outra doença endêmica na região é a Malária.
Somente este ano, em Cabo Delgado, a cólera atingiu mais de quatro municípios, adoecendo cerca de 800 pessoas e matando dezenas (os dados epidemiológicos aqui também são subestimados) e a Malária segue sendo uma das principais causas de morte na infância.
A cultura familiar é muito forte. Elas vivem juntas, se apoiam. Filhos apoiam e sustentam seus pais idosos (não há plano de aposentadoria aqui). E são numerosas. Muitas crianças.
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Com a violência e a guerra civil que ocorre aqui, no Norte, as famílias acabam abandonando suas vilas, casas e pertences e fogem na sua maioria somente com a roupa do corpo e seus numerosos filhos. Dormem na mata até sentirem-se seguros de pegar a estrada e movimentar-se para a próxima vila. Com isso, temos um grande movimento de refugiados internos nessa província. E uma população de mais de 100 mil refugiados (dados UNHCRR) internos, espalhados por diversas cidades.
Serviços de saúde superlotados
Essas famílias superlotam as comunidades e serviços de Saúde das outras cidades. Essas famílias refugiadas espalham-se pela comunidade, em casas de outros familiares, e em alguns lugares podemos encontrar mais de 5 famílias dividindo a mesma casa de duas peças, com uma latrina (se tiver latrina). Pense que aqui, cada família tem em média 5 pessoas. E nesse ponto que gostaria de dividir minha maior preocupação. Como fazer isolamento domiciliar e quarentena em um contexto como esse?
:: Como a África do Sul está enfrentando o coronavírus ::
Vejo grande preocupação com o atendimento de casos graves da covid-19, mas essa ainda não é minha preocupação. A doença aqui ainda está em estágio inicial de contágio. Não temos casos de contaminação na comunidade. A maioria dos casos confirmados que temos hoje foi de uma pessoa que chegou da Itália por um aeroporto de uma companhia privada (burlando a estrutura de Vigilância Sanitária imposta desde fevereiro pelo governo local) e fez reuniões em três diferentes cidades, contaminando um total de 29 casos positivos em três cidades diferentes.
A maioria dos ministérios da Saúde africanos estão atuando nas medidas de prevenção. Eles sabem das suas limitações, mas também são acostumados com muitos surtos. Eles não são arrogantes e desde o início a maioria fechou fronteiras ou fez vigilância epidemiológica das pessoas que chegavam ao país vindos de áreas já afetadas, colocando-os em quarentena domiciliar.
Por terem várias medidas preventivas desde o início é que a doença está tardando a chegar aqui. Mas sabemos que vai chegar e que serão tempos muito difíceis. As pessoas não possuem acesso às medidas preventivas de água, sabão e isolamento social. Em sua maioria precisam trabalhar diariamente para alimentar seus filhos. Sentimos as pessoas assustadas, com máscaras na rua, luvas, pontos de lavagem de mãos em vários lugares, fake news, a covid-19 está por todos os lados.
Por terem várias medidas preventivas desde o início é que a doença está tardando a chegar aqui. Mas sabemos que vai chegar e que serão tempos muito difíceis. As pessoas não possuem acesso às medidas preventivas de água, sabão e isolamento social.
Não estamos prontos, somos como todos. Estamos tentando prevenir o inevitável e minimizar as consequências. Espero que os africanos tenham razão, pois acreditam que aqui não haverá casos graves porque são fortes e resistentes e por isso permanecem vivos.
*Taís Reginatto da Costa é enfermeira brasileira e colaboradora da ONG Médicos Sem Fronteira
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Fernandes e Katia Marko