ENTREVISTA

Vale prefere bancar o ônus a ter que deixar de lucrar, diz integrante do MAM

Charles Trocate cita mortes e danos ambientais provocados por mineração, que tem isenção de impostos e apoio das elites

Brasil de Fato | Marabá (PA) |

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Vila da Ressaca, em Senador José Porfírio (PA), luta contra a instalação da Belo Sun, maior mina de ouro a céu aberto do país - Catarina Barbosa/BdF

A manutenção da atividade da mineração, sem dúvida, tende a disseminar o novo coronavírus. Isso é um risco para os trabalhadores e também para as pessoas que moram em comunidades localizadas no entorno de onde é realizada a extração mineral. Além dos casos de covid-19 entre seus funcionários, a atividade é conhecida por prejudicar a saúde dos trabalhadores, por meio de problemas respiratórios, danos causados ao meio ambiente e também por ser um risco quando o assunto é o rompimento das barragens de rejeitos.

O Brasil de Fato convidou Charles Trocate, integrante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), para dialogar sobre a atividade, seus impactos e possíveis soluções. Para ele, antes de dar prosseguimento ao debate, é urgente a necessidade de se discutir a democracia no país. Isso porque a mineração — que no Brasil é sinônimo de Vale — é um bloco de poder.

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Para se instalar, é comum as mineradoras se associarem às elites locais. Com o apoio do governo, elas ditam as regras do mercado. Tanto que, mesmo durante a crise do novo coronavírus, a mineração foi considerada como "atividade essencial" por decreto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido)

Confira abaixo a entrevista.

Brasil de Fato: Charles, existe atividade de mineração sem causar dano à vida das pessoas e ao meio ambiente?

Charles Trocate: A mineração é talvez a mais longa atividade de duração da história da humanidade. A sociedade sempre transformou a natureza a seu favor. O fato é que, nos últimos 300 anos, nós transformamos demais a natureza a nosso favor, para transformar a natureza em mercadoria, a mercadoria em consumo. 

Desse ponto de vista, ela provoca primeiro a exaustão de milênios geológicos em função da retirada dos mais diversos minerais transformados em mercadoria, que usamos no nosso cotidiano, como também leva à exaustão os indivíduos humanos, os territórios e a sociedade como um todo. 

Dito de maneira geral, a mineração provoca, por um lado, um desequilíbrio socioecológico e ambiental e, por outro, o desperdício de natureza, porque nem todo mundo pode consumir as mercadorias, e as mercadorias têm ficado cada vez mais de curtíssima duração. (...) Nem tudo aquilo que nós consumimos, de fato, precisaríamos estar consumindo. 

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O modelo de mineração utilizado no Brasil é exclusivo ou ele é usado em outras partes do mundo?

Ele não é um modelo exclusivo do Brasil, ele faz parte do que a gente pode chamar de reorganização do capital e do trabalho no plano mundial. Em outras palavras, existem economias de natureza colonial exportadora, porque existem economias industriais consumidoras de matéria-prima. 

Então, a dialética entre economias de traço colonial exportador — como essa que nós mantemos no nosso modelo de mineração — e economias industrializadas — aquelas que, chegando essa matéria-prima, transformam-na em objeto industrial — repercutem e perpetuam a lógica. A exportação de matéria-prima, a produção de objeto industrial e a exportação para o local de onde veio essa matéria-prima. 

Está mais claro para a gente hoje que, no país, o modelo de mineração é fundamentalmente a companhia Vale do Rio Doce, que herda as características da empresa colonial-mineral e inaugura a mineração no período republicano, sobretudo, nos últimos 50 anos.

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Isso ficou claro para nós, porque essa lógica que estamos vivendo, ou seja, a lógica acelerada de mineração, faz parte de um processo de reprimarização, ou seja, nós aceitamos a tarefa de fornecer matéria-prima e essa lógica vai ser implementada, sobretudo, pelo processo de desestatização, ou seja, pelas privatizações.

[Essa lógica de reprimarização] se combina com mais dois elementos. [O primeiro é que essa lógica] serve apenas para o equilíbrio da balança comercial. [O segundo é que] é necessário exportar de maneira incessante a mineração, e isso é provocado pelo aparecimento de uma lei, chamada Lei Kandir, que isenta de pagamento todo produto para exportação, estruturada naquilo que a gente chama na isenção de imposto, evasão de divisas e baixo pagamento de imposto às regiões mineradas e estados mineradores.

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Essa é a tríade que caracteriza o nosso modelo de mineração, ou seja, o nosso modelo de mineração dá prejuízos ao Brasil, porque ele, ao desgastar milênios geológicos, joga para muito longe a possibilidade de sermos uma outra sociedade, moderando o uso dos nossos recursos naturais, dos nossos bens naturais para uma planificação da nossa economia, ou seja, um controle maior da nossa natureza, sobretudo, do consumo e da própria projeção de que sociedade nós poderemos ser.

Há casos de lugares no mundo em que a mineração é realizada de maneira responsável?

Diversas experiências, inclusive. Há muitas publicações nas quais estamos nos referenciando, das diversas formas de dizer "não" a esse modelo predatório de mineração.

Primeiro, esse modelo predatório só pode ser levado a cabo por elites predatórias. O que acontece nas regiões do globo é que a empresa de mineração se associa às elites locais, e as elites locais ajudam na implementação dessa forma predatória, impedindo a sociedade local de acessar o conhecimento, mas sobretudo, impedindo o acesso à renda da mineração.

Então, o que nós temos são diversas manifestações ao redor do globo de comunidades e sociedades que foram dizendo "não" à mineração. Dizer "não" à mineração em um território não significa dizer "não" de maneira geral. Mas há muitas iniciativas mundo afora de comunidades, lugares que disseram "não", ou seja, a luta pelo território livre de mineração tem crescido no mundo. 

Fato é que, quando um lugar diz "não", a mineradora encontra outro lugar mais fácil para se estabelecer. Mas a lógica incessante de extração de matéria-prima não para. Mas há experiências exitosas, importantes na América Latina, na África, na Ásia e aqui mesmo no Brasil. 

O Brasil tem condições de chegar a exercer uma mineração responsável? O termo "mineração verde" é definido como uma mineração com menos impacto? Isso é, de fato, possível?

Toda atividade humana, fundamentalmente, é uma atividade de impacto porque o ser humano é um indivíduo prático. Do ponto de vista conceitual, é impraticável, seja do ponto de vista teórico, o termo "mineração verde"; seja do ponto de vista da sua realização prática. 

O que nós temos que decidir é se a gente transforma a natureza a nosso favor para resolver os nossos dilemas e, inclusive, dilemas de consumo e mercadoria. O nosso principal embate tem sido de que precisamos rapidamente entender que nem tudo se pode minerar. Precisamos saber como minerar e como dirimir os impactos dessa mineração. 

Fundamentalmente é como mensurar, seja na economia, porque a natureza pode dar "n" formas de economia, não só a mineral. E como mensurar coisas como minerar e o tempo dessa mineração. 

É o que nós temos chamado de direito de exercer a soberania popular pela mineração. Nós precisamos decidir rapidamente, porque, no Brasil, o fato de o Estado não decidir onde minerar e como minerar fez com que essa dimensão acabasse caindo como tarefa daqueles que estão nos territórios, sendo que a mineração é impraticável do ponto de vista do ecologicamente correto, porque ela sempre vai deixar desperdício de natureza, sempre vai deixar destroços ambientais, onde se realiza e se pratica. 

Com relação ao novo coronavírus, por que tu achas que a mineração foi considerada uma atividade essencial durante a pandemia? Isso tem ligação com o que citastes sobre como ela é uma atividade predatória e de como ela serve, basicamente, ao lucro, sem se importar com a vida dos trabalhadores e das populações que moram ao redor da área minerada? Há essa relação?

Nós poderíamos pegar como referência Mariana (MG), Brumadinho (MG), Oriximiná (PA) e Barcarena, no Pará. Seja qual for o motivo do adoecimento coletivo dos trabalhadores ou mesmo do acidente de trabalho ampliado, sempre é melhor para a empresa bancar o ônus do que isso significa – seja do ponto de vista do esgotamento geofísico de regiões inteiras pela contaminação do acidente ampliado, seja até mesmo pela morte dos trabalhadores e a judicialização.

A Vale é o modelo de mineração no Brasil e ela exerce monopólio de poder, ela é bloco de poder e demanda na política conjuntural, isso desde que reprimarizamos a nossa economia. Quanto mais a gente reprimariza, ou seja, quanto mais a gente aceita o papel de fornecedor de matéria-prima, mais as multinacionais de caráter como a Vale demandam a essencialidade do que pode e o que não pode.

Isso é fundamental para entendermos a relação da atividade de mineração como atividade essencial à economia nacional em relação ao coronavírus. Morra quem morrer, contamine quem contaminar, como a empresa é funcional ao sistema de produção de mercadoria, ela sempre opta por judicializar os processos dos mortos, levando-os aos tribunais. E ela é imbatível nos tribunais nacionais, quiçá, nos internacionais. Por um lado judicializando e por outro montando comitê de crises para conter qualquer desgastes públicos como é o caso do que está acontecendo com o novo coronavírus.

O governo federal transforma a mineração em atividade essencial, ele decreta para uma classe trabalhadora da mineração, já extremamente enfadada, adoecida, o seu ponto de morte. A empresa de mineração sequestra o imaginário social dando a ele uma única alternativa: é preciso minerar, mesmo que o coronavírus nos leve à morte.

E qual é a solução? O que precisamos fazer para mudar essa realidade?

Do ponto de vista histórico, é muito recente que nos atentemos enquanto sociedade para um problema mineral ou para a natureza amortecida do nosso modelo de mineração, desde o período da mineração colonial, mesmo a mineração industrial e republicana.

Nessa década que passou, conseguimos politizar, pelo menos, três questões e estamos entrando na segunda década desse debate, nos esforçando para inaugurar elementos novos na sociedade: primeiro, a luta pelo território livre de mineração; [segundo,] a necessidade de se fazer o debate pelo fim da Lei Kandir, que fundamenta essa forma avassaladora a mineração na sociedade brasileira, porque é por isso que a empresa de mineração é imbatível, porque ela tem muito dinheiro. É o mesmo motivo pelo qual o agronegócio é imbatível. Ambos não pagam nenhum imposto sobre essa circulação.

Na próxima década, não dá para debater mineração sem debater democracia e a atual crise no país. Não tenhamos dúvidas de que a mineração faz parte do bloco de poder. Ou seja, não dá para debater democracia sem debater o controle do modelo de mineração no Brasil em favor das amplas massas populares e da própria sociedade. Logo, há, sim, caminhos e alternativas a esse modelo predatório.

Edição: Vivian Fernandes