Faminto, quem vai te alimentar? [...] Se quiseres um pedaço de pão, junta-te a nós, que temos fome [...] Os que tem fome vão te alimentar
(Todos ou ninguém, de Bertolt Brecht)
Para aquelas/os que já estávamos desveladas/os pensando nas tarefas necessárias para alargar os horizontes de humanidade para derrotar o neofascismo que conquistou mentes e corações de uma parte das/os brasileiras/os, a “pandemia do capitalismo” - assim chamada por diversos intelectuais no Dossiê preparado para a revista Herramienta - vem para complicar ainda mais as coisas.
Além do tão necessário trabalho de base que devemos retomar ou aprofundar (a depender da sua trincheira de militância), vamos ter que aprender a sortear as dificuldades de pautar e construir, em condições de distanciamento social, a saída para esta crise social brutal.
Mas temos mais problemas, porque neste lado dos trópicos, o enrijecimento das relações de força que se expressa na vitória de uma figura como Bolsonaro, leva as nossas reivindicações ao básico.
Só para dar um exemplo: enquanto as/os companheiras/os argentinas/os estão alertas para que as acertadas estratégias sanitárias mobilizadas pelo governo não se tornem medidas higienistas que provoquem mais segregação social ou meios de militarização dos territórios empobrecidos, nós aqui, nos tornamos defensoras/os de uma quarentena que uma parte ínfima da população pode cumprir frente à total ausência de qualquer estratégia sanitária unificada e coordenada pelo poder central, pois o que impera é um deliberado projeto genocida.
Alguma coisa me diz que vamos precisar nos inspirar no preso “que tanta liberdade nos ofereceu” - expressão do intelectual cubano, Fernando Martinez Heredia, para se referir a Antônio Gramsci - e nos lançarmos ao desafio gigante de fazer “grande política” em tempos de supremacia sórdida da “pequena política”: afinal, Gramsci nos deixou esse legado radical, produzido em condições extremas de confinamento numa prisão fascista.
Inúmeras/os analistas vem destacando a relação clara que existe entre a pandemia, os desequilíbrios socioambientais produzidos pelo capitalismo e a destruição de sistemas públicos e universais por décadas de políticas de ajuste neoliberal.
Vale lembrar que estas políticas foram perpetuadas inclusive nos governos do PT, sendo coroadas pela Emenda Constitucional (EC) “da morte” que congela por 20 anos o teto dos gastos que impactam nas condições de vida das/os trabalhadoras/os (mas não para o capital).
Nos nossos países de capitalismo dependente, onde já levamos 40 anos de saque neoliberal extrativista, temos uma versão mais clara da crise social, econômica e ambiental que já enfrentávamos antes da expansão universal da covid-19.
Brasil coleciona, como poucos países, condições de desequilíbrio ambiental “ideais” para a produção de pandemias. A análise do biólogo Rob Wallace, que lançará em junho deste ano o livro Pandemia e agronegocio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência, no Brasil, estabelece relações entre a produção de pandemias com a expansão de industrias que deslocam populações e espécies de animais ou os confinam para sua cria intensiva, destruindo habitats naturais da vida silvestre e perturbando ecossistemas, provocando desequilíbrios favoráveis à mutação e reprodução de vírus.
Na mesma direção, ver também entrevista ao pesquisador francês Serge Morand e ao pesquisador boliviano Zambrana-Torrelio, que também apontam esta relação entre deflorestação / assedio ao ecossistema e expansão de doenças zoonóticas.
A tragédia da expansão da fronteira agropecuária em mãos do agronegócio, os desastres ambientais genocidas provocados pela indústria mineradora, o desmatamento ilegal e as queimas no Amazonas, que vem colocando águas, terras, biodiversidade e populações inteiras na roda neocolonial do mercado global.
Aqui a letalidade do vírus pode ganhar proporções incomensuráveis e é por isso que precisamos agir com urgência e reconstruir as nossas armas para enfrentar esta crise civilizatória: o futuro só será mais humano se as nossas lutas sociais o puderem alumbrar.
Quem vai pagar a conta da desaceleração econômica que se agudiza com a interrupção das grandes cadeias globais de valor? O Fundo Monetário Internacional (FMI) já disse que o confinamento levará a uma queda do Produto Interno Bruto (PIB) três vezes maior que a provocada pela crise de 2008 e a queda abrupta do preço do petróleo (em algumas análises, a maior crise dos últimos cem anos) são sinais de que as saídas propostas pelo capital são promessas certas para nós de mais desemprego e desigualdade; violência social; adoecimento; leilão acelerado das nossas terras, águas e biodiversidade; ou ritmos mais intensos de exploração.
Recentemente, a Oxfam apontou que em 2019, os 2.153 milionários que havia no mundo possuíam mais riqueza que 4.600 milhões de pessoas, ou também que o 1% mais rico da população possui mais do dobro de riquezas que 6.900 milhões de pessoas. E para quem ainda tem dúvidas dos contornos patriarcais e raciais da desigualdade social capitalista, os dados mostram que os 22 homens mais ricos do mundo possuem mais riqueza que todas as mulheres da África.
Quem vai pagar a conta?
Tudo indica que a fome será um dos focos destacados da panela de pressão que pode explodir a qualquer momento e é provável que ela arrebente antes como expressões inorgânicas e de barbárie, que como rebelião social.
Também não seria raro que esse cenário fosse aproveitado por organismos e agências internacionais de financiamento, que, como em outros momentos da história, queiram repetir suas fórmulas mágicas de “ajuda alimentar”, que vão de mãos dadas com o aumento da intervenção econômica e militar; a dependência, a destruição da agricultura de subsistência (da soberania alimentar) e a rifa dos nossos bens naturais.
Silvia Federici nos ajuda a compreender as políticas de “ajuda alimentar” como um componente essencial da máquina de guerra neocolonialista contemporânea em O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista (São Paulo, Elefante, 2019). O tema também é abordado de forma contundente em Ajudas alimentares no Haiti e os desafios dos Movimentos Camponeses na busca por soberania alimentar de Luiz Paulo de Almeida.
O Banco Mundial e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID na sigla em inglês) são as grandes usinas das fórmulas de enfrentamento da miséria para os territórios onde possam se intensificar os levantes populares; fórmula observada no México e no Equador após as rebeliões indígenas dos anos 90, na Bolívia após a “guerra do gás”, ou no Haiti após anos de intervenção militar.
Como em outros momentos históricos, na agenda do capital, as mulheres (e as classes subalternas) somos mobilizadas como “molas” para amortecer a crise. Como se não bastasse a enorme cadeia de cuidados e tarefas reprodutivas que se intensificam durante a pandemia (cuidado de idosas/os e doentes, acompanhamento de tarefas escolares das/os filhas/os, aumento do trabalho doméstico, “absorção” de frustrações e violências familiares), é provável que nós mulheres compensemos com o nosso trabalho a deterioração das condições econômicas provocadas pela crise e pela total ausência do Estado na promoção de medidas de proteção social – uma espécie de reforço do trabalho doméstico que promete nos amarrar mais e melhor aos grilhões da divisão sexual do trabalho.
Mais fome; menos saúde; educação mais precária; maiores dificuldades de acesso a água ou de plantio de alimentos; menos renda; desnutrição ou destruição ambiental se traduzem em “malabares” cada vez maiores que as mulheres fazem frente à intensa desvalorização do trabalho reprodutivo, conforme apontou Silvia Federici em A reprodução da força de trabalho na economia global e a revolução feminista inacabada.
Trabalho reprodutivo gratuito que é uma alavanca fundamental da atual dinâmica de acumulação porque é mobilizado para manter os atributos produtivos de uma força de trabalho que pode ser descartável, mas que deve estar sempre pronta para as engrenagens da superexploração: desde as/os trabalhadoras/es de entrega em bicicleta; as/os motoristas de aplicativos; as/os profissionais da saúde que estão na linha de frente e sem equipamentos de proteção enfrentando a covid-19.
Passando pelo enorme contingente de força de trabalho mobilizada pelo modelo extrativista exportador até as/os funcionários públicos, todas/os supõem uma enorme quantidade de trabalho reprodutivo. Ainda que seja um cálculo difícil de estimar, o mencionado relatório da Oxfam aponta que o valor econômico do trabalho de cuidados não remunerado que realizam em todo o mundo as mulheres de 15 ou mais anos, chega ao valor aproximado de 10,8 bilhões de dólares anuais; cifra que triplica o tamanho da indústria mundial de tecnologia.
Por isso é fundamental para o capital disciplinar as mulheres; para que elas continuem cumprindo silenciosamente as tarefas que as confinam numa naturalizada divisão sexual do trabalho. Não é casualidade que cresça a violência contra nós, nos contextos de brutal expansão das relações capitalistas, seja pela ação de forças repressivas ou milícias, seja pelo aguçamento de relações opressivas interpessoais em cenários de barbárie.
Os movimentos de mulheres de México, Colômbia, Guatemala, Honduras e Brasil, há tempos denunciam a exploração sexual infantil e a violência de gênero que cresce ao ritmo do alastramento nos territórios de mineradoras, hidroelétricas e do agronegocio, como o retrata o trágico assassinato de Berta Cáceres em 2016, tema abordado em Desterrados: Tierra, poder y desigualdad en América Latina de Arantxa Guereña.
Mas há também outro fator que pode devolver centralidade ao trabalho doméstico, pela via da expansão do trabalho domiciliar e remoto que se instala no “laboratório” da pandemia. É provável que nos próximos anos mensuremos a real dimensão de uma estratégia capitalista que possa dispensar escritórios, instalações e infraestrutura física porque conta com uma força de trabalho que foi absorvendo essas funções do processo de produção nas suas costas.
É o/a trabalhador/a que faz entregas e aluga a bicicleta; é a/o motorista do aplicativo de transporte que aluga o carro numa concessionária ou que adquire o seu próprio numa interminável prisão de parcelas ou “correntes” bancárias; é a/o profissional que “vende” seus serviços à prefeitura como “trabalhador/a autônomo/a”.
Ricardo Antunes vem mostrando nos debates recentes a insegurança de um contingente de 50 milhões de trabalhadoras/es que não estão protegidos por um contrato de trabalho.
Nos tempos que virão, além da intensificação da exploração e expropriação, todas/os as/os trabalhadoras/es deveremos enfrentar essas tentativas do capital que buscam minar nossos esforços de organização, rebaixar salários e criar novas divisões entre os subalternos (hierarquias de gênero, caos sociais, disputas que nos desarmem para as grandes batalhas, antagonismos interpessoais, etc.).
Se com Gramsci podemos afirmar que estamos em um momento onde as “forças em luta se equilibram de modo catastrófico” e portanto, falamos de “situações de difícil exercício da função hegemônica” - conforme aponta o autor em Cadernos do Cárcere. Volume 3. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política, deveremos reinventar as condições da batalha político-ideológica, criando e recriando lutas que possibilitem a expressão autônoma e antagônica das classes subalternas e das periferias, conforme observa Marcos Del Roio em Gramsci: periferia e subalternidade.
“Faminto quem vai te alimentar?”, se pergunta Brecht e responde: “os que têm fome vão te alimentar”.
Thompson nos mostra que nos primeiros passos na história de organização da classe trabalhadora na Inglaterra, há movimentos que parecem “causas perdidas”, que produzem aparentes “becos sem saída”. Mas o certo é que de tanto ensaio de auto-organização, há momentos em que as classes subalternas irrompem com heroicos exemplos de rupturas dos impossíveis becos sem saída.
Por isso são fundamentais as pautas mais radicais que viemos ensaiando – sem medo de gritá-las porque elas possam não “caber” na estreita correlação de forças –, pois qualquer reedição de uma estratégia de colaboração de classe só vai nos afundar ainda mais na tragédia que estamos e à qual chegamos também por essas apostas que desarmaram a classe.
Mas também, ao mesmo tempo em que pautamos o imposto às grandes fortunas, a nacionalização do sistema sanitário e medidas universais de proteção social, defendemos respostas mais viáveis para construir o gramsciano “espirito de cisão” nos grupos subalternos com reivindicações como a fila única dos leitos para a UTI, a ampliação do auxílio assistencial, a proteção dos empregos e salários.
Precisaremos também de políticas para enfrentar e desfazer os “nós” da divisão sexual do trabalho que nos confina às mulheres ao espaço doméstico e ao trabalho reprodutivo.
Para enfrentar a infame e mistificadora oposição entre “empregos ou saúde”, temos que mostrar a enorme desproporção do fundo público mobilizado para socorrer às empresas (e salvar o capital) e os desnutridos recursos investidos no auxílio assistencial emergencial, mas sobretudo devemos traduzi-lo em propostas que façam sentido na vida do povo.
E o povo é mulher que agora está mais próxima do seu algoz, é índia/o que morre queimada/o com sua floresta, é negra/o que adoece mais rápido na periferia, é LGBT expulsa/o de casa ou sem renda, é trabalhador/a explorado/a pela radicalização da chamada uberização, é idosa/o abandonada/o pela previdência social pública que foi para os bancos, é servidor/a público/a que, de uma forma ou outra, também é alvo deste assassinato em massa que estamos vivendo.
Feminismo, pão e solidariedade de classe serão fundamentais para os tempos que virão. “[...] considerando que os senhores nos ameaçam com fuzis e canhões, nós decidimos, de agora em adiante, temeremos mais a miséria que a morte”, também disse Brecht em Os dias da Comuna.
Isso nos lembra que as classes subalternas não se renderam à fome ao longo da história. Por isso as campanhas de distribuição de alimentos que vêm sendo construídas pelos movimentos populares (como “Nós por nós” ou “Periferia sem fome”) são estratégias fundamentais de solidariedade de classe.
Em contextos em que as “ajudas alimentares” são um componente essencial da máquina da guerra neocolonialista, porque essas políticas vem acompanhadas de estratégias que destroem infraestrutura e provocam uma crise reprodutiva; criam condicionalidades econômicas e dependência alimentar; impulsionam o agronegócio e disponibilizam terras e força de trabalho para o mercado internacional como aponta Silvia Federici.
Romper o cerco da fome é muito mais que a entrega de um alimento para o/a trabalhador/a superexplorado/a da cidade. Esses dias, um companheiro do PDS Osvaldo de Oliveira (único assentamento do estado do Rio de Janeiro, construído no formato de um Projeto de Desenvolvimento Sustentável, novamente ameaçado por uma ação de despejo que tramita na justiça) contava o caminho da solidariedade de classe, na forma de um alimento agroecológico produzido pelas mãos companheiras que, através de uma campanha de doação de alimentos, chega à mesa do/a trabalhador/a de uma favela de Macaé, um dos maiores municípios produtores de petróleo do país, que – não por casualidade – concentra índices nada desprezíveis de violência sexual contra as mulheres.
:: Para combater a "pandemia da fome", MST já doou mais de 600 toneladas de alimentos ::
Com solidariedade de classe, as/os compas enfrentam a atual expropriação capitalista e afirmam com teimosia que o faminto, só pode ser verdadeiramente alimentado por quem tem fome.
*Katia Marro é assistente social, professora do curso de Serviço Social do Campus Universitário da UFF de Rio das Ostras.
Edição: Leandro Melito