Nossa Vichy [cidade-sede do nazismo francês] é incorpórea. Ela mora na alma dos generais brasileiros
Quando foi invadida e derrotada pela Alemanha hitlerista em 1940, a França perdeu ali mais do que uma batalha. Perdeu o respeito próprio. À derrocada, seguiu-se a implantação de um estado-fantoche, a República de Vichy, em referência à cidade francesa de Vichy, que sediou o governo. Liderada por um velho herói da 1ª Guerra Mundial, o marechal Philippe Pétain, Vichy cunhou a expressão “colaboracionismo”. Vichy e seus colaboracionistas pegaram em armas não contra o invasor, mas contra os franceses que não aceitaram o nazismo. Mas o que isso, que aconteceu há 80 anos, tem a ver com Brasil de 2020? Mais do que se pensa.
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Sim, o Brasil não foi ocupado por uma força exterior a que parcela dos brasileiros aderiu. O caso é mais complexo. Nossa Vichy não é uma simpática estação de águas como a cidade que abrigou o governo da França pró-nazista. Nossa Vichy não se deixa ver. Apenas nos deixa sentir suas consequências. Nossa Vichy é um sentimento, uma conveniência, uma escolha, uma postura perante a vida. Nossa Vichy é incorpórea e intangível. Ela mora na alma dos generais.
Cada um deles, os da ativa e os de pantufas, capitulam todos os dias. Erigem uma nova Vichy sobre os escombros do seu caráter. Acontece a cada instante em que testemunham, passivamente, uma nova derrota. A cada momento que assinam uma nova rendição. Cedem não ao inevitável mas à escassez de horizontes, a sua robusta, frondosa e invencível mediocridade. Em troca da nação, firmam um armistício indecoroso com a própria ganância e a sofreguidão por evidência. Seu projeto? Nenhum.
Erigem uma nova Vichy sobre os escombros do seu caráter. Acontece a cada instante em que testemunham, passivamente, uma nova derrota.
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Pétain humilhou-se diante do Fuhrer, a quem elogiou como “cortês”. Hitler, então, era o conquistador da Polônia, Tchecoslováquia, Dinamarca, Noruega, Luxemburgo e Bélgica. Os generais humilham-se perante uma figura cuja maior conquista de fundo bélico foi a publicação nas páginas de Veja de um plano de explodir quartéis.
Para quem estranha, a Vichy de Pétain e o Brasil dos generais tem laços interessantes. A começar pelo desprezo pela soberania. São estados em que o líder entrega território, submete-se a outra nação, adula sua liderança poderosa e bate continência para a bandeira alheia.
Outro ponto é o nacionalismo de fachada. É só um adereço, uma alegoria, um faz de conta que se esgota em slogans, fanfarras e patriotadas. Segue pela adoção do mesmo credo do chefe estrangeiro a quem bajula. Continua ao tomar como seu inimigo aquele a quem desagrada ao Estado tutelador. Vichy agradou à Alemanha perseguindo judeus e comunistas. O Brasil insultou a China, seu maior parceiro comercial, apenas porque os chineses desafiam a supremacia mundial dos EUA.
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Um quinto tema em comum reside no culto ao preconceito. Vichy celebrou o antissemitismo, o anticomunismo, a xenofobia, a misoginia, os ataques à democracia e o fundamentalismo religioso. No Brasil de 2020 ocorre quase um espelhamento das rejeições de Vichy, com a inclusão de índios, negros e a comunidade LGBTs.
Vichy suprimiu o direito de greve, enquanto aqui se fulminam as leis trabalhistas. E recorreu a milícias para caçar adversários políticos. Milícias, como sabem até os urubus que sobrevoam a favela de Rio das Pedras, é um termo pleno de afeto para o bolsonarismo.
Pétain enaltecia sua gestão, dizendo que fazia uma “revolução nacional” rumo a “uma França livre, poderosa e próspera”, queixando-se dos jornais estrangeiros que o criticavam. No Brasil, onde o autoengano também nutre uma alucinada narrativa de sucesso governamental, a gritaria contra jornais e jornalistas escalou decibéis inéditos na história do país.
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Como se percebe, a sombra de Vichy se projeta sobre o Planalto Central. Há mais em comum do que se imagina. E os generais, ao servirem de escolta para um personagem que estarrece o mundo civilizado, convalidam o quadro da dor. É o que fazem ao sucumbirem compulsivamente, aderindo a uma aventura que os marcará, aprofundando o estigma das forças armadas. Tudo porque seus generais, em vez de comandantes, preferiram ser os espectros de Vichy, desertando do compromisso de serem dignos do país e de sua gente.
*Ayrton Centeno é jornalista; trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado; documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017).
Edição: Camila Maciel