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Genocídio, palavra conhecida no Brasil

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Protesto contra violência policial em fevereiro de 2017, no centro do Rio e Janeiro - Fernando Frazão / Agência Brasil
No ranking de mortes por covid-19, país tem histórico de alta taxa de assassinato de negros e jovens

A palavra "genocídio", utilizada como hashtag diante da incompetência do governo Bolsonaro em lidar com a pandemia de covid-19 (#BolsonaroGenocida), já estava há muito tempo no vocabulário brasileiro. Nosso país, que parece se esforçar para conquistar a liderança no triste ranking mundial de mortes diárias pelo coronavírus, tem como referência negativa um histórico de altas taxas de assassinatos da população negra e jovem.

Nessa quarta-feira (20), outra hashtag popularizada recentemente, a #ficaemcasa, se cruzou com aquela do genocídio: João Pedro, de 14 anos, um garoto que sonhava em ser advogado, estava em casa quando foi assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Quem puder, fica em casa. Não foi isso que dissemos? João Pedro podia. Seu pai e sua tia, que souberam de sua morte só depois que ele já tinha sumido num helicóptero, não. Eles tinham que trabalhar no momento do crime, empurrados por um Estado que não consegue proporcionar condições para que as pessoas se preservem da infecção viral, sejam seus gestores contrários ou favoráveis à ciência.

Quem puder, fica em casa. Não foi isso que dissemos? João Pedro podia. Seu pai e sua tia, que souberam de sua morte só depois que ele já tinha sumido num helicóptero, não.

No Brasil, os negros representam 55,8% da população brasileira, mas são 75,4% dos assassinados pela polícia. Não foi à toa, portanto, que mobilizamos esse vocabulário, tão duro e áspero, com tanta rapidez para nos referirmos ao governo federal: estávamos familiarizados com ele.

Lei de genocídio

É de 1956 a Lei (2.889/56), que trata do crime de genocídio. Ela prevê, em seu artigo 1º, que deverá ser punido “quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”. No artigo 3º da mesma lei, consta que quem “incitar, direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes de que trata o art. 1º” também deve ser punido, sendo ainda mais grave quando se trata de governante ou funcionário público.

Vivemos em um país em que o extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade ou grupo nos é conhecido desde 1500. O Brasil, vale lembrar a título de contextualização, é também um dos que mais lincha ou tenta linchar no mundo. Uma pessoa por dia, segundo pesquisa do sociólogo José de Souza Martins. O número é parecido com o de LGBTQIAs assassinados: uma morte a cada 26 horas, de acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB).

Ao cenário de morte física, agregamos aquela cultural, chamada de epistemicídio: a destruição de conhecimentos ligada à destruição de seres humanos. Saberes e modos de existir que vão sendo destroçados conforme se extermina um povo.

A morte tem cor

Uma sociedade desigual e racista desde sua constituição, que tem na violência a ferramenta pela qual se mantêm os privilégios, teria outro destino? Quero acreditar que sim, embora todos os fatos nos levem a dizer que não. Afinal, elegemos um presidente da República que incita publicamente o ódio contra determinados grupos — gente de esquerda e feministas, por exemplo — e que estimula o contágio da população a um vírus que fez o mundo todo parar, causando dor e angústia.

Uma sociedade desigual e racista desde sua constituição, que tem na violência a ferramenta pela qual se mantêm os privilégios, teria outro destino? Quero acreditar que sim, embora todos os fatos nos levem a dizer que não.

Aqui, mais uma vez, a morte tem cor, e não é a branca. Negros e indígenas estão entre os mais impactados pela doença. Nessa quarta (20), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (COIAB) denunciou: “Há um genocídio institucionalizado no Brasil através da política anti-indígena de Bolsonaro. O Estado brasileiro ainda não conseguiu implementar um plano de contingência para atuar junto as povos indígenas na situação de pandemia. A COVID-19 chegou nas aldeias da Amazônia”.

“É possível pensar em utopia ao mesmo tempo em que analisamos a desordem do mundo”, diz uma frase bastante inspiradora da socióloga francesa Danièle Kergoat. Talvez. Mas, para tanto, creio temos que nos implicar, enquanto sociedade, em relação a nós mesmos e à realidade na qual estamos inseridos. Hashtags não darão conta da mudança estrutural que precisamos. Nem daquilo e daqueles que já perdemos.

*Maíra Kubík Mano é jornalista e doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Professora do departamento de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisa a participação e representação política das mulheres.

Edição: Vivian Fernandes