O Chile não é um dos países mais comentados pelos noticiários mundo afora por seus números a respeito da pandemia do novo coronavírus, apesar de que a realidade no país tem se tornado cada dia mais preocupante.
Atualmente, o país andino tem 78 mil casos confirmados, registrando entre 4 e 5 mil novos casos por dia. As mortes, que já são 806 no total, variam entre 40 e 50 diariamente. Números que podem parecer baixos se comparados aos do Brasil, mas que são preocupantes em um país com 18 milhões de habitantes.
Além disso, a forma como se chegou a esse panorama também chama a atenção. A partir do primeiro caso, no começo de março, o país estabeleceu uma estratégia de “quarentenas dinâmicas”, somente nas regiões onde havia pessoas infectadas”. Com isso, registrou uma evolução lenta da quantidade de contágios e mortes.
Em meados de abril, o Chile registrava uma média de mil contágios por dia por coronavírus, e nunca superava as 15 mortes diárias. Números que não eram os melhores, mas estavam longe de ser preocupantes como no Brasil e no Equador. Além disso, a rede hospitalar do país ainda mostrava que tinha capacidade de sobra para tratar os novos pacientes.
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Nova normalidade
Essa situação ajudou o governo a recuperar um pouco da credibilidade perdida com a revolta social de outubro e novembro de 2019, mostrando uma gestão correta da pandemia até aquele momento.
Foi então que o presidente Sebastián Piñera – um mega investidor ultraliberal e dono da maior fortuna do país –, em um momento de triunfalismo, fez um pronunciamento em rede nacional, pouco depois do feriado de Páscoa, convocando o país para construir o que chamou de “nova normalidade”, e um “retorno seguro” das pessoas ao trabalho.
A decisão provocou resposta imediata do Colégio de Médicos do Chile, instituição que reúne esses profissionais da saúde, e que alertou que a medida era um erro, e que a pandemia não só não estava contornada como estava prestes a entrar no chamado “pico”, que os especialistas locais em epidemiologia programaram para as primeiras semanas de maio.
“Nós dissemos ao presidente já na primeira reunião em que participamos como Colégio de Médicos. Que vivíamos um momento complexo para enfrentar esta pandemia. Há desconfiança nas autoridades de governo, há desconfiança nas diferentes instituições do país. É por isso que, desde o começo, nós propusemos uma outra forma de manejar esta situação”, comentou a presidenta do Colégio de Médicos, Izkia Siches.
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Mas o governo de direita seguiu em frente com seu plano, reabrindo alguns comércios, inclusive shoppings centers. O resultado não demorou em aparecer: a partir das primeiras semanas de maio, a curva de contágios começou um salto, que foi potenciado pela “nova normalidade”. Rapidamente, o Chile passou dos mil para os 2 mil novos casos diários. Na semana seguinte, já registrava 3 mil, e não demorou muito para alcançar os 4 mil.
Na segunda-feira (25), o Chile teve 4,8 mil novos infectados com covid-19, e esse patamar passou a ser a “nova normalidade” do país, enquanto as autoridades de saúde clamam para que a população retorne ao isolamento, mas já sem garantir que isso será suficiente para conter a curva de contágios em um curto prazo.
A situação é mais dramática na Região Metropolitana de Santiago, que concentra quase 80% dos casos no país. No mesmo dia 25 de maio, dos 4,8 mil novos casos em todo o Chile, a capital do país teve 4 mil.
Com isso, a rede hospitalar que parecia suficiente semanas atrás, passou a enfrentar problemas, e o próprio Piñera admitiu, em entrevista no último domingo (24), que a disponibilidade de leitos de UTI e respiradores artificiais estava no limite.
Algumas entidades acusam o governo de maquiar os dados e apresentar números com subnotificação. Em uma série de tuítes recentes, a jornalista chilena Alejandra Matus afirmou, com base em documentos do registro civil de Santiago, que o número oficial de mortes por “doenças respiratórias” na cidade, entre março e abril de 2020, foi de 4,2 mil, 15 vezes mais que o número de mortes por covid-19 informado pelo Ministério da Saúde.
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Revolta nos bairros pobres
Além da crise de saúde, os tropeços do governo de Sebastián Piñera também têm provocado problemas econômicos. O governo deu carta branca para que as empresas demitam funcionários em função da quarentena, o que levou a demissões massivas, ingrediente que se torna ainda mais complexo devido à falta de auxilio por parte do Estado.
Pressionado pela oposição, o governo aceitou entregar uma bolsa de 65 mil pesos (cerca de R$ 440) em junho, outra de 55 mil (380 reais) em junho e uma terceira de 45 mil pesos chilenos (R$ 310) em agosto, somente para as famílias mais pobres. Também prometeu entregar uma cesta de alimentos para as famílias suportarem a quarentena.
A medida sequer foi promulgada e já causa repúdio, especialmente nos setores mais pobres da Região Metropolitana de Santiago, onde muitos moradores reclamam que há pessoas que já estão passando fome devido à falta de trabalho e de renda.
Desde meados de maio, alguns bairros como El Bosque, La Pintana e La Granja registraram protestos, com barricadas e enfrentamentos com a polícia.
A dirigente social Virginia Bustos, presidenta da junta de vizinhos do bairro El Progreso, e do Comitê de Moradia Santiago Multicolor, explica que as pessoas não têm condições econômicas de cumprir a quarentena, porque muitas trabalham na informalidade, onde se vive com o dinheiro que se ganha por dia, e nos dias em que não se trabalha, não há dinheiro. Diante dessa situação, ela opina que a oferta do governo para ajudar as pessoas a enfrentar a quarentena chega a ser ofensiva.
Ela também culpa o governo de Piñera de ser responsável pelo aumento dos contágios e mortes. “Ter que escutar todos os dias o governo, através dos seus porta-vozes, dizer mentiras, e dizer enganos. Dizer que somos o melhor país, dizer que o mundo todo nos felicita, dizer que a pandemia está controlada. Dizer que se pode sair para tomar um café e depois uma cerveja, e depois reclamam por que as pessoas estão nas ruas? Creio que este governo é imoral e está no limite de ser criminoso”, reclama Bustos.
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Enquanto isso, algumas organizações sociais, como o movimento territorial Ukamau – “somos assim”, em linguagem aymara – tentam reagir com ações de solidariedade, inspiradas pelo lema “o povo ajuda o povo”. Doris González, porta-voz do movimento lamenta que “a única resposta que o governo tem para esta crise de saúde, econômica, social e de fome é a repressão e a perseguição daqueles que tentam visibilizar suas demandas justas e legítimas neste país”.
O governo de Piñera quis utilizar a epidemia para recuperar um pouco da legitimidade e credibilidade não está alcançando os resultados esperados. Por sua vez, a cidadania se articula como pode, e até mesmo o Colégio de Médicos apresentou, na sexta-feira (22), uma proposta de apoio econômico e social, realizada por conhecidos economistas, em uma nova tentativa de mostrar ao governo um caminho melhor do que o seguido até agora.
* Matéria escrita em colaboração com Paola Cornejo, direto de Santiago.
Edição: Rodrigo Chagas