O Assentamento Luiz Beltrame, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na cidade de Gália, a 60 km de Bauru, interior do estado de São Paulo, existe há cerca de seis anos enquanto território reconhecido judicialmente.
Lá, são produzidos mandioca, batata doce, milho, feijão, maracujá, entre outros grãos, frutas e folhagens, além da produção animal e de derivados, como leite e queijo. Toda semana, dali saem 100 cestas agroecológicas para serem comercializadas em Bauru e Marília, além de outros produtos para as cidades de Ubirajara, Duartina, Garça, Alvinlândia, Lucianópolis e Gália.
Tudo isso, no entanto, está diante do abismo de uma decisão da 3ª Vara da Justiça Federal de Bauru de desalojar essas famílias, que representam cerca de 70 pessoas, sendo 20 delas menores de 18 anos.
O prazo para a desocupação é de 120 dias contados a partir de 24 de abril, quando a ordem de despejo foi publicada no Diário Oficial da Justiça. Se não ocorrer de forma pacífica com o auxílio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) até o dia 24 de agosto, a Justiça autorizou o uso de força policial
Ângelo Diogo Mazin, produtor rural e morador do assentamento, afirma que a emissão de posse e homologação das famílias foram feitas entre 2012 e 2014 em cima de duas propriedades antigas da região: Fazenda Portal do Paraíso, desapropriada por motivo de crime ambiental, e Fazenda Santa Fé (Recreio Gleba 3), desapropriada por motivo de improdutividade.
Nesta última, onde moram as 20 famílias, o ex-proprietário, o latifundiário e industrial jauense Jorge Ivan Cassaro, não aceitou a desapropriação e reivindicou a posse da terra na Justiça.
Cassaro argumentou que o solo é inadequado para plantio. Somente em 2018, no entanto, foram produzidas apenas para comercialização 300 toneladas de mandioca pré-cozida, 5 mil caixas de maracujá, 200 sacas de feijão orgânico, 50 mil dúzias de milho verde, 2 mil caixas de quiabo, 8 mil toneladas de manga e criadas 100 cabeças de gado.
Ainda assim, a Justiça decidiu a favor do ex-proprietário Jorge Ivan Cassaro.“Então, hoje a área está com a matrícula antiga do proprietário. Já existe uma decisão transitada em julgado que a área deve voltar para as mãos do antigo proprietário”, lamenta Mazin.
O assentado lembra que a região se configura como um assentamento instituído.“As famílias são cifradas, assinaram um contrato de assentamento, passaram pela mesa de seleção. Houve todo um processo judicial de legalização e de constituição do assentamento", explica.
Ainda assim, com a possibilidade de um despejo ocorrer a qualquer momento, os moradores permanecem apreensivos. Eles entraram com um pedido de suspensão do despejo mas, se a ordem for cumprida, Mazin afirma que o Incra não tem nenhuma proposta de área para reassentar as famílias.
“As famílias por conta própria foram construindo, tem casa, tem gente que fez poço. Tem gente que tem curral, que tira leite. Então, tem um impacto econômico também na vida dessas pessoas. É um assentamento que já está bem estruturado. Estamos há seis anos aqui dentro da área”, afirma Mazin.
Defensoria Pública fora do processo
Segundo João Paulo Dorini, defensor público de São Paulo, a Defensoria Pública da União entrou com um pedido, há cerca de um ano, para fazer parte do processo enquanto “custos vulnerabilis”, que é uma previsão do Código de Processo Civil de 2015, cujo conteúdo obriga o Judiciário a intimar a Defensoria Pública da União (DPU) em todos os processos de reintegração de posse que envolvem grupos em situação de vulnerabilidade social.
No processo, no entanto, não houve a intimação, e o pedido da DPU para entrar como parte do processo ainda não foi apreciado. “A gente entende que isso pode inclusive contaminar todo o processo que desde o início deveria ter tido a participação da Defensoria Pública”, afirma Dorini.
Outro agravante é a situação da pandemia de covid-19. “Como que você vai tirar uma pessoa do lugar de onde ela mora, sendo que não há nenhuma perspectiva de conseguir qualquer outro lugar para morar em uma situação imediata, com toda essa crise que a gente vive, não só sanitária por conta da pandemia, mas também a crise econômica e política que impedem a pessoa de ter qualquer tipo de renda e, portanto, conseguir alguma coisa.”
Para ele, enquanto houver medidas de isolamento social, é “impossível” o cumprimento de uma decisão de reintegração de posse.
“A princípio eu tenho pra mim que de fato é uma situação que não faz sentido ter uma assentamento produtivo que tenha que reverter tudo isso para trás”, afirma Dorini, ainda que não tenha acesso ao trâmite integral do processo, pelo fato da Justiça ainda não ter apreciado o pedido da DPU.
O assentamento
Em 2010, dois decretos assinados pelo então presidente Lula e publicados no Diário Oficial da União (DOU) declararam o interesse social da região para fins de reforma agrária. Isso autorizou o Incra a realizar a desapropriação das duas fazendas para a formação do Luiz Beltrame.
Em 2013, foi criado oficialmente o Projeto de Assentamento Luiz Beltrame, por meio da portaria nº 19 do Incra, que homologou o assentamento.
O impacto positivo do assentamento na região foi tamanho que, em março de 2019, a Câmara Municipal de Gália aprovou duas moções: uma de aplausos ao Incra pelo papel “fundamental” no assentamento Luiz Beltrame e outra de apoio às 20 famílias no local.
Quem é Ivan Cassaro?
Jorge Ivan Cassaro é dono da Mundial Paper Embalagens, localizada em Jaú. Em 2014, ele foi candidato a deputado federal, e, em 2016, a prefeito de Jaú, pelo então Partido Ecológico Nacional (PEN), hoje denominado Patriota (Patri). Até 2019, ele integrava o Partido Social Liberal (PSL), quando o deixou e passou a integrar o Partido Social Democrático (PSD).
Quando tentou se tornar prefeito de Jaú, Cassaro teve a candidatura impugnada pelo Tribunal Superior Eleitoral por abuso de poder econômico. Na época, ele declarou um patrimônio de aproximadamente R$ 20 milhões em bens: 10 terrenos em Jaú, 2 sítios, 3 fazendas (incluindo a Fazenda Santa Fé), aplicações financeiras, empresas e uma casa.
*Com informações de Lucas Mendes, do Jornal Dois
Edição: Leandro Melito