No dia 17 de maio, indígenas das etnias Guarani e Kaiowá divulgaram uma carta denunciando a falta de assistência do governo federal na luta contra a disseminação do coronavírus nas aldeias do Mato Grosso do Sul. De acordo com o documento, o estado é de “emergência” para os 51 mil indígenas na região.
“Anunciamos que estamos diante de mais um massacre anunciado com a chegada do covid-19 em nossos territórios e apelamos pela nossa sobrevivência. São 520 anos de massacres, doenças que a violenta experiência de colonização nos trouxe no Brasil. Nos restam poucos anciões que guardam o conhecimento tradicional, a vida deles e da comunidade estão em risco, e junto a perda da história de um povo. Quem será responsabilizado pela morte do nosso povo?”, perguntam os indígenas no texto.
A carta (leia a íntegra) é assinada pelos conselhos tradicionais Guarani e Kaiowá Aty Guasu (assembléia Geral do Povo Guarani e Kaiowá), Kuñangue Aty Guasu (Grande Assembléia das Mulheres Guarani e Kaiowá), RAJ (Retomada Aty Jovem) e Aty Jeroky Guasu (Assembleia geral dos Nhanderus e Nhandesys).
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Em entrevista ao Brasil de Fato, o antropólogo Eliel Benites, liderança do povo Guarani no Mato Grosso do Sul e professor da Universidade Federal da Grande Dourados, lamentou a postura do governo federal. “O governo está ausente nas comunidades indígenas, não temos água potável e tem gente passando fome e necessidade. Nós estamos dependendo da cesta básica, isso é ruim, porque não há estímulo para o plantio, não temos nenhuma ajuda.”
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Eliel, como está o mapa de contaminação no Mato Grosso do Sul?
Eliel Benites: O cenário, em relação ao coronavírus, aqui nas comunidades indígenas de Caarapó, onde estou fazendo minha quarentena, tem dois casos comprovados. Essas pessoas foram contaminadas e descobriram semana passada. A partir disso, fizemos o trajeto dessas pessoas e descobrimos que eles tiveram vários contatos.
Percebemos que nas próximas semanas devemos ter mais casos confirmados. Na região de Dourados, o número de casos é ainda maior. Estamos numa situação em que o coronavírus já é uma realidade nas aldeias e estamos preocupados em conter as famílias, porque nossa comunidade tem a cultura de visitar os parentes em outras aldeias.
Vocês estão conseguindo garantir condições minímas de higiene para evitar a proliferação do vírus? E o governo federal, tem ajudado as comunidades indígenas?
Temos um comitê de combate ao coronavírus aqui no município, também temos um comitê formado na Sesai, que é a Secretaria Especial de Saúde do Indígena. Mesmo com as dificuldades, os indígenas estão fazendo uma barreira sanitária na entrada e saída da aldeia para as cidades, com participação dos professores indígenas e nossas lideranças. Com os trabalhadores que está paralisados, afastados do trabalho, a nossa barreira fica mais forte.
Porém, não há uma política pública para combater o coronavírus no contexto indígena, porque as iniciativas são individuais, localizadas. Isso gera uma consequência ruim, pois não tem uma lógica. O governo está ausente nas comunidades indígenas, não temos água potável e tem gente passando fome e necessidade. Nós estamos dependendo da cesta básica, isso é ruim, porque não há estímulo para o plantio, não temos nenhuma ajuda.
Na semana passada, a câmara dos deputados aprovou o PL 1142, que garante a presença de missionários em terras indígenas. Como o senhor recebeu essa notícia? Ainda na política, na reunião dos ministros do dia 22, o chefe da Educação, Abraham Weintraub, afirmou que odeia o termo “povos indígenas”. O senhor soube dessa declaração? o que acha dela?
A presença dos missionários aqui na nossa região é muito antiga, da época colonial ainda. Os jesuítas já atuavam nas aldeias do povo guarani. Eles querem pacificar o indígena para escravizar, querem passar a ideia da salvação do indígena através do cristianismo e a história nos mostra que o cristianismo agiu para facilitar a colonização e a perda do nosso território, é isso que define nossa realidade, estamos até hoje na luta pela terra, pelo nosso território.
Quando o ministro diz que odeia os povos indígenas, ele está negando todo o processo de destruição que os povos indígenas vivenciaram. Então, é um discurso que viola a nossa história. É claro que as posições políticas individuais, tudo bem, mas como autoridade, ele tem que saber que o Brasil foi constituído às custas de muita morte dos indígenas.
Leia a íntegra da carta:
Nós, Conselhos tradicionais Guarani e Kaiowá Aty Guasu (assembléia Geral do Povo Guarani e Kaiowá), Kuñangue Aty Guasu (Grande Assembléia das Mulheres Guarani e Kaiowá), RAJ (Retomada Aty Jovem), Aty Jeroky Guasu (Assembleia geral dos Nhanderus e Nhandesys) viemos através desta carta anunciar que estamos diante de mais um massacre anunciado com a chegada do COVID-19 em nossos Tekohás (Territórios indígenas) e apelamos pela nossa sobrevivência.
Somos aproximadamente 51mil Guarani e Kaiowá, a segunda maior população indígena do Brasil, localizados no estado de Mato Grosso do Sul, e nos encontramos em Estado de Emergência. São 520 anos de massacres, doenças que a violenta experiência de colonização nos trouxe no Brasil. Nos restam poucos anciões que guardam o conhecimento tradicional, a vida deles e da comunidade estão em risco, e junto a perda da história de um povo. Quem será responsabilizado pela morte do nosso povo?
Em três dias de testes, a Reserva Indígena de Dourados (RID), a mais populosa do Brasil, hoje (16 de maio de 2020) confirmam 10 casos positivos de Coronavírus na comunidade. Todos os territórios Guarani e Kaiowá estão sob alerta montando barreiras sanitárias, bloqueando todos os acessos aos territórios. Os dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena apontam casos suspeitos em vários territórios Guarani e Kaiowá, para além das “subnotificações” em todo o Brasil.
As condições de moradia nas aldeias não permitem o isolamento domiciliar, favorecendo a transmissão em larga escala e rapidamente, e sendo a COVID-19, uma doença de alta letalidade precisamos urgentemente de pontos de apoio para isolamento dos pacientes confirmados.
Estamos diante do maior DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) do Brasil, e 70% dos usuários são Guarani e Kaiowá, e com o avanço do Coronavírus nas aldeias, de acordo com o boletim epidemiológico da SESAI, a cidade de Dourados com poucos leitos disponíveis, não terá suporte para tantos indígenas infectados. A Secretaria Especial de Saúde Indígena necessita de fortalecimento URGENTE para enfrentar essa pandemia.
Os municípios encontram-se fragilizados, e mesmo assim o desejo do Governo Federal é de municipalização da saúde indígena. A situação do Covid-19 só demonstra a insuficiência dos municípios em dar conta da saúde dos povos indígenas em seus territórios, de forma que nem rede de urgência e emergência consegue disponibilizar nas aldeias mais distantes dos espaços urbanos.
As redes de contato dos casos confirmados estão sendo avaliadas para rastreio e intervenção. O caso traz preocupação considerando que Dourados possui a maior população indígena deste grupo do Estado, totalizando 17,3 mil indígenas. Toda equipe de saúde está trabalhando para conter o avanço da doença, e a partir destes primeiros casos registrados o plano de ação da saúde indígena passa para a segunda etapa, na qual será feita ampla testagem na população indígena. A SESAI faz o cuidado específico em nível de atenção básica, necessitando de forma urgente da corresponsabilidade e compromisso dos demais níveis de atenção da rede SUS (Sistema Único De Saúde).
Nós Aty Guasu, Kunangue Aty Guasu, RAJ e Aty Jeroky Guasu viemos solicitar o atendimento diferenciado especifico para indígenas, uma organização URGENTE da rede de urgência e emergência segura, respeitando as especificidades do nosso povo: ambulâncias, leitos, alternativas de isolamentos possíveis para a comunidade, proteção aos trabalhadores em contatos familiares, EPI’s e vagas em cemitérios.
Todas doações de ajudas humanitárias de sobrevivência serão bem-vindas: alimentos, máscaras de três camadas de tecido de algodão, produtos de higiene para as comunidades, caixas d’aguas para armazenamento, e sementes para o plantio em nossas roças.
Recomendamos a toda comunidade Guarani e Kaiowá que fiquem em seus Tekohas, que toda a liderança tenha a responsabilidade do bloqueio sanitário de todos os acessos de entradas aos territórios indígenas para manter a saúde do Povo Guarani e Kaiowá, permitindo apenas a entrada de trabalhadores da Saúde e ajudas humanitárias.
Agradecemos cada apoio e cumprimentamos a todos os profissionais que estão a frente dessa Pandemia Coronavírus. Somos solidários (as) às todas as famílias em luto.
Não é só uma crise de saúde, é o genocídio do nosso povo, é um tratamento desumano e racista contra as nossas vidas. É URGENTE! Pedimos SOCORRO!
Edição: Rodrigo Chagas