Coluna

O capitalismo, a Justiça e a falta de reparação aos atingidos pelo crime de Mariana

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Por que, mesmo com toda a aparente mobilização institucional, não se vê quase nada de resultado?

Por Anna Carolina Murata Galeb e Tchenna Fernandes Maso*

Passados quase cinco anos do rompimento da Barragem do Fundão em Mariana, que contaminou a bacia do Rio Doce e o litoral capixaba, o processo de reparação integral dos atingidos teve mais retrocessos do que avanços. Sem ser novidade para as grandes corporações globais que há décadas causam conflitos socioambientais e exploram as pessoas e o meio ambiente, a lógica de contaminar e exterminar se tornou muito mais lucrativa do que a de preservar e respeitar a vida.

Muitos estudos demonstram que tais atividades extrativistas, altamente poluidoras e violadoras de direitos, só são possíveis em territórios onde a estrutura estatal e de justiça são frágeis, possibilitando as atividades se tornarem predatórias com altas taxas de lucro. E assim o crime anunciado deu lugar a indústria da reparação, consultorias, pesquisas milionárias, e paupérrimas indenizações. Como bem diz o bordão neoliberal, “nunca desperdice uma boa crise”.

Tais violações de direitos raramente se tornam prejudiciais as atividades das empresas que incorporaram ao funcionamento de suas atividades o gerenciamento de conflitos. Na linguagem empresarial, o respeito de direitos virou responsabilidade social e quem julga se a empresa está fazendo um bom trabalho de reparação são seus acionistas e o mercado – desde que, claro, a produção e o lucro não parem.

Desde o início a Justiça brasileira – substantivo próprio, com J maiúsculo – fez-se parecer presente. Houve uma grande mobilização do judiciário para atuar no caso. Praticamente todas as instituições de justiça e órgãos do executivo estaduais e federais foram mobilizados para atuar no processo de reparação. Ainda assim, por que não se vê quase nada de resultado?

Não há somente um elemento que explique a atuação das instituições de justiça, mas a questão central a ser entendida é que a Justiça não é a justiça. A inexperiência das instituições diante da complexidade do caso, reflexo do atraso do ensino jurídico para preparar juristas para lidar com violações de direitos humanos e com as táticas das grandes corporações, a falta de leis adequadas, o desequilíbrio de poderes, a fragilidade institucional, e as disputas internas de poderes constituem a parte mais aparente desse cenário.

Há também o limite ideológico, esse sim permeado em todos os atores, por vezes imperceptíveis, outras vezes consensuais até mesmo com as empresas. O primeiro limite é próprio do direito e até agora se encontra impenetrável e irredutível: o direito de representar significa o direito de decidir pelos atingidos. Desde o começo as instituições de justiça que atuam na defesa dos interesses sociais e individuais fracassaram em assegurar a participação ampla, informada e qualitativa dos atingidos no processo. 

E é com a participação ampliada dos atingidos de maneira qualificada que o segundo entrave ideológico aparece. A principal disputa que está colocada é quanto a definição do nexo de causalidade. E o maior deles é a contaminação do rio. Sem a comprovação de que haja a contaminação das águas e do ar, o reconhecimento de grande parte dos atingidos se torna injustificável, pois os riscos à saúde daqueles que moram na bacia do rio Doce “desapareceria” e assim o dever de reparar. Não é à toa que essa é a questão central no processo. Mesmo após realizados os estudos por empresas credenciadas contratadas pelo Comitê Interfederativo (CIF), além dos estudos realizados por universidades e pela Assessoria Técnica de Barra Longa, o magistrado do caso indeferiu a utilização dos estudos como provas válidas e determinou a realização de um novo estudo, com a metodologia que ele julga ser a adequada – não por acaso a metodologia de análise que as empresas apontam como a melhor. 

Outra questão é quanto à possibilidade do reconhecimento construído de maneira coletiva dos diversos danos ocasionados ao longo do rio Doce. São milhares de trabalhadores informais, pessoas que dependiam do rio e dos circuitos informais de economia para subsistência. A Justiça não conhece a realidade do povo: a “informalidade”. Antes de ser uma característica que indique a necessidade de “modernização”, o reconhecimento pela Justiça ainda só se dá por aqueles que estão plenamente incorporados a um modo de vida urbano e capitalista. Desde o início do processo são realizadas exigências absurdas aos atingidos para que os mesmos comprovem seus danos, inviabilizando que os mesmos sejam reconhecidos enquanto atingidos. Aqui não é somente o princípio da segurança jurídica que rege o processo, mas a acusação de que a maioria dos atingidos “não foi realmente atingido” e está se aproveitando do processo de reparação. A noção de justiça que é aplicada aos atingidos é muito diferente daquele aplicado às empresas. 

Há questões muito mais profundas e estruturais para que o judiciário não jogue o jogo somente consigo mesmo. Terminado o processo para os membros do sistema de Justiça resta a esperança de assim como aqueles que participaram das cruzadas, de que seus pecados restem perdoados diante da batalha travada. Para as Instituições em si há pouca ou nenhuma responsabilidade em face da não garantia de direitos, com um judiciário conservador para o qual a inevitabilidade da morte do povo não é motivo para se responsabilizar as empresas pelas suas violações – a lógica do capital de que não se faz um omelete sem quebrar alguns ovos. Se um outro mundo é necessário, a democratização do judiciário e da Justiça só será possível com uma transformação radical.

Chegamos a quase cinco anos de um experimento em larga escala no rio Doce, em que a doutrina de choque funcionou muito bem diante da incapacidade do judiciário em responder de maneira adequada as violações de direitos. Ao contrário, o processo reparatório conduzido pela Justiça tem sido tão violador quando o dano continuado propagado pelas empresas. 


* Anna Carolina Murata Galeb integra o Coletivo Nacional de Direitos Humanos e a coordenação estadual do MAB em Minas Gerais, e é associada e integrante do Coletivo de Comunicação do Instituto de Pesquisa Direito e Movimentos Sociais (IPDMS).

* Tchenna Fernades Maso integra o Coletivo Nacional de Direitos Humanos e a Coordenação Nacional do MAB, e é associada ao IPDMS.

Edição: Rodrigo Chagas