A proibição ao álcool durante a pandemia vai pelo mesmo caminho escolhido pelos EUA nos anos 1920
Já estamos há alguns meses em quarentena e a pandemia parece não ter um prazo para acabar. Há algumas semanas comecei a ver matérias e compartilhamentos sobre uma possível restrição ao consumo de álcool enquanto durarem os efeitos sanitários do novo coronavírus. Cidades nos Estados Unidos e alguns municípios brasileiros já proibiram a venda de bebidas alcóolicas e pressionam políticos e governadores para que suspendam a venda de álcool. Imediatamente fui transportada para outra época, que usou argumentos semelhantes para criar um movimento proibicionista – os Estados Unidos dos anos 1920.
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Em 1920, mais especificamente no dia 16 de janeiro, o auge do inverno, os Estados Unidos aprovaram sua 18ª emenda. Estava proibida a fabricação, o comércio, o transporte, a importação e a exportação de bebidas alcoólicas. As medidas ficaram conhecidas sob um único nome, a Lei Seca. Não é preciso lembrar que apenas um ano antes, a pandemia de Gripe Espanhola havia devastado o país, acentuando a desigualdades, matando pobres e soldados que voltavam da Primeira Guerra Mundial.
A Lei Seca era uma tentativa de resolver os problemas relacionados à pobreza e à desigualdade, vistas na época como consequência da má educação e do vício em bebidas alcoólicas. Era o embrião do pensamento a respeito da meritocracia que vemos hoje. Essa era uma ideia com profundas raízes na nascente sociedade industrial do século 19. E o alcoolismo das classes populares foi debatido em livros, em igrejas e em jornais por quase um século antes de ganhar uma lei profundamente autoritária e puritana na América dos anos 1920. Nesse período nasceram várias entidades encarregadas em “curar”, “regenerar”, “salvar” os viciados – quase todas elas ligadas a entidades religiosas.
A discussão era complexa. Muitos dos que realmente eram viciados em álcool eram homens pobres sem perspectivas de trabalho ou que tinham um trabalho muito mal remunerado e perigoso. Gastavam sua renda com cerveja ou gim e jogando e apostando em pubs e bares. As mulheres e os numerosos filhos não entravam na conta. Então, foram elas, as mulheres, que muitas vezes encabeçaram as ligas proibicionistas tanto na Europa como na América. Aliadas às Igrejas – católica, protestante e anglicana – tornaram-se fervorosas defensoras da proibição de bebidas, que incluía na lista de substâncias a serem banidas o ópio e os entorpecentes. Dessa maneira, muitas feministas, que lutavam pelos direitos das mulheres, estiveram ao lado dos proibicionistas, endossando leis e pressionando governos, para salvar a própria família.
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Obviamente, a Lei Seca não deu certo. Quase que imediatamente surgiram locais para se consumir bebida, as pessoas começaram a fabricar álcool em casa, a indústria se reorganizou, rotas de contrabando se estabeleceram e criou-se uma cultura de consumo de álcool em festas e bares ilegais. A proibição, que durou 13 anos, serviu para o aumento da corrupção policial, a criação e máfias poderosas que enriqueciam a olhos vistos com o contrabando. A autoridade policial de cidade como Nova York e Chicago perderam a credibilidade perante a população dada quantidade de policiais corruptos pagos pela máfia de bebidas.
Os bares clandestinos, geralmente subterrâneos ou escondidos atrás de paredes secretas eram chamados de “speakeasy” – sussurro em inglês –, pois os frequentadores tinham de falar baixo para não chamar a atenção. Coquetéis de bebidas variadas se tornaram populares pois ajudavam a diluir os líquidos como rum, vermute, gim ou whiskey. O clima desses lugares, e das perseguições policiais às máfias, ficou eternizado em filmes como O poderoso chefão, de Francis Ford Coppola, ou livros como O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald.
Assim como durante a Lei Seca o componente religioso estava fortemente presente no movimento contra as bebidas, a proibição ao álcool durante a pandemia do novo coronavírus vai pelo mesmo caminho. A religião, principalmente os evangélicos daqui e dos Estados Unidos, se mobilizam contra o que consideram um inimigo a combatido. Isso, associado à ideia de que o vírus é uma praga divina e que devemos nos penitenciar se queremos sair vivos, fomenta o caldo ideal para que ideias proibicionistas vicejem.
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Edição: Rodrigo Chagas