“Nós devemos estar indignados, mas não surpresos”. A morte de George Floyd é a última expressão desta frase quase banal agora.
Diferente desta vez, no entanto, foi o protesto no início da noite de terça-feira. Refiro-me aos milhares, talvez mais de cinco mil, na maior cidade de Minnesota que se reuniram pacificamente, mas decidiram descarregar sua raiva com o mais recente ultraje por parte da força policial de Minneapolis. Embora a grande mídia, não surpreendentemente, tenha se concentrado nos atos violentos de raiva no final da mobilização de massa - e desde então - a história importante, porém, é o que aconteceu três horas antes.
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A mobilização foi um dos maiores protestos na cidade contra a brutalidade policial desde as manifestações em torno do caso de Rodney King em 1992 (trabalhador da construção civil Afro-Americano que se tornou escritor e ativista depois de sobreviver a um ato de brutalidade policial pelo Departamento de Polícia de Los Angeles.). Para um Afro-Americano da minha geração, ainda me maravilho com a composição racialmente diversificada dos protestos contra a brutalidade policial hoje, algo, praticamente ausente nos anos 1960. A ação de terça-feira, como 1992, foi em sua maioria caucasiana.
Um contexto diferente: a pandemia
Indiscutível é o contexto muito diferente, no qual as autoridades estaduais e locais sentem que têm poder para ordenar que os cidadãos fiquem em casa - a pandemia. O prefeito de Minneapolis, Jacob Frey, de fato, disse mais cedo que se os manifestantes estivessem com máscaras e “distanciados socialmente” poderiam exercer os direitos da Primeira Emenda (parte da Constituição estadounidense que afirma “O Congresso não fará nenhuma lei respeitante ao estabelecimento de uma religião, nem proibindo o livre exercício dela; nem cerceando a liberdade de expressão, ou de imprensa; ou o direito que tem o povo de reunir-se pacificamente e pedir ao governo a correção de agravos”) - como se precisássemos de sua permissão.
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Tão impressionante quanto o protesto foi quão discreta a força policial do prefeito era. Ele claramente a tinha em rédea curta. As massas se organizaram - muitas máscaras, mas não muito “distanciamento social”. A morte de George Floyd teria feito qualquer tipo de intervenção da polícia para impor a última ordem executiva do prefeito um cenário ainda mais explosivo.
O que mobilizou tantas pessoas foi exatamente o que aconteceu em 1992: o comportamento desumano da polícia da classe dominante - e tudo capturado pela
câmera. Desta vez, de maneira tão arrepiante, estava o policial Derek Chauvin de Minneapolis, com o joelho enfiado no pescoço de Floyd. Imagine as mandíbulas implacáveis de um guepardo segurando o pescoço de uma gazela recém-capturada. Tratado como um animal por um veterano de 19 anos da força policial de Minneapolis é como a vida de George Floyd terminou.
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O tratamento que quase levou ao fim da vida de Rodney King provocou protestos em massa, alguns deles violentos, em todo o país. Alguns de nós sabíamos que o mesmo poderia acontecer aqui. Nós nos organizamos para garantir que o protesto em Minneapolis fosse militante, mas pacífico. Não porque fetichizamos a paz. Mas porque queríamos o maior número de pessoas nas ruas - o meio pelo qual mudanças reais já ocorreram na história.
Nenhum incentivo para agir de maneira diferente
A única solução imediata para esses atos hediondos do policial Chauvin e de seus comparsas é prender policiais que agem como eles. Enquanto as autoridades municipais estiverem dispostas a resolver tais ofensas com pagamentos às famílias das vítimas, não haverá incentivo para os Chauvins e seus facilitadores nos escritórios de promotores distritais e nas forças policiais a agirem de maneira diferente.
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Quanto à única solução em longo prazo, considere o que o ex-chefe da polícia de Minneapolis, Tony Bouza, disse em seu livro “Police Unbound” (“Polícia sem limites”). "A origem do problema do crime e do abuso policial nos Estados Unidos é nossa estrutura de classe tacitamente aceita que separa os privilegiados dos pobres e, junto com ela, o racismo sistêmico que a sociedade como um todo ainda não está disposta a enfrentar”. Bouza, (Anthony V. Police Unbound: Corruption, Abuse and Heroism by The Boys in Blue. New York: Prometheus Books, 2001) um defensor obstinado da instituição que criticou, mas serviu – demonstra o que o lema do departamento de polícia “To Protect and Serve” (“Proteger e Servir”) realmente significa – ele foi pelo menos honesto.
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Somente com o desmantelamento da sociedade de classes e suas inevitáveis desigualdades é possível uma solução real. Utopia? Considere - um tópico para outra discussão - o exemplo cubano que também, como os Estados Unidos, têm raízes longas na escravidão racial e todas as suas consequências, mas não suas inevitabilidades.
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Há uma semana, participei alegremente, juntamente com outros 200 manifestantes, da ação da Minnesota Nurses Association perto do Capitólio de Minnesota para exigir mais proteção para seus membros. O protesto no início da noite de terça-feira no sul de Minneapolis foi qualitativamente diferente. As milhares de pessoas que haviam se instalado nos arredores do Capitólio por mais de dois meses necessitavam de desabafar, muitos desobedientemente - a maior ação progressiva até agora em qualquer lugar dos Estados Unidos durante o bloqueio pandêmico sancionado pelo Estado.
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Tendo participado em mais de quatro décadas de marchas contra a brutalidade policial, a de terça-feira, eu argumento, foi de uma importância sem igual. Protestos em massa no meio do flagelo da gripe de 1918-1919, inclusive aqui em Minnesota, ensinam que a luta de classes não desaparece em uma pandemia. Minneapolis, 26 de maio de 2020, confirma essa verdade.
Autor: August H. Nimtz Jr. Professor de Ciências Políticas. Leciona também sobre Estudos Africanos e Afro-Americanos. Foi premiado com o título de Ensino Distinto, da Universidade de Minnesota. É autor de diversas obras.
Tradutor: Mario Soares Neto – Advogado, Professor e Pesquisador. Integrante do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – PPGD/UFBA.
Edição: Lucas Weber