Está em curso uma extraordinária crise na indústria de eletricidade brasileira, que se agravou de forma dramática com a pandemia do coronavírus. Diante da situação, o Governo Federal (Decreto Nº 10.350/2020) e a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL (Consulta Pública nº 35/2020) decidiram impor à sociedade uma série de medidas para salvar os altos lucros dos agentes empresariais e financeiros do setor elétrico. Essas iniciativas terão como resultado um “tarifaço” de grande impacto financeiro que será repassado nas contas de luz dos 73,5 milhões de consumidores residenciais a partir de 2021.
Os elementos da realidade indicam que se instalou no interior da cadeia industrial de produção e distribuição de energia elétrica uma crise sem precedentes. Face ao baixo crescimento da economia, acompanhado de grande aumento na capacidade de geração no Sistema Interligado Nacional (SIN), evidencia-se que aproximadamente 37% da capacidade instalada encontra-se ociosa, o que representa 33.500 MW médios de energia excedente que não encontra demanda de consumo suficiente para completar o ciclo de realização de valor. Esse volume de sobra equivale à geração média de eletricidade de sete usinas do porte de Belo Monte, o que demonstra a magnitude da crise.
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Atualmente, existem cerca de 172.000 MW de potência instalada e fiscalizada no SIN, distribuídas da seguinte forma: hidrelétricas 63%, termelétricas 27%, eólicas 9% e fotovoltaicas 1%. Essas usinas possuem uma garantia firme de geração de cerca de 90.000 MW, em média. Porém, a carga média verificada em janeiro de 2020 foi de 68.675 MW médios, mostrando que já existia 24% de sobra de energia antes mesmo do aparecimento do primeiro caso de Covid-19 no país.
Durante os primeiros 60 dias de isolamento social (20/03/2020 – 20/05/2020) a média do consumo nacional caiu para de 56.500 MW médios, ou seja, o que equivale a 63% de utilização da capacidade real do sistema elétrico.
Foi para regulamentar a parcela que as empresas estão deixando de ganhar que o governo Bolsonaro emitiu o Decreto Presidencial 10.350 de 18 de maio de 2020, que visa disponibilizar recursos para cobrir o déficit de receita das grandes empresas do setor. Na prática, o objetivo é ressarcir as empresas por tudo que elas deixaram e deixarão de vender e arrecadar até o dia 31 de dezembro de 2020.
Governo cria dívida na conta de luz
O decreto 10.350 autoriza a criação da chamada “Conta-Covid”, permitindo às empresas do setor elétrico cobrir seus déficits ou mesmo antecipar receitas. Na prática, o governo autorizou contrair uma dívida junto a uma espécie de “cartel” de bancos que, segundo o histórico do setor, incluirá o BNDES, Banco do Brasil, Bradesco, Itaú Unibanco, Santander, Citibank, Safra, BTG, BNB, Banco Mundial, Bank of Americ, JP Morgan, Credit Suisse, entre outros.
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De acordo com o mesmo decreto, o dinheiro do empréstimo deverá ser o suficiente para cobrir toda a queda do consumo de energia e de arrecadação financeira das concessionárias, para que estas consigam honrar com todos os contratos de geração, transmissão, distribuição e os volumes de encargos setoriais e tributos.
Os principais itens que compõem o montante para cálculos de volume do empréstimo são: a) a “sobrecontratação”, ou seja, aquilo que as empresas não conseguirão vender de abril a dezembro de 2020. Vale destacar que nos primeiros 60 dias de pandemia (20 de março a 20 de maio) a queda no consumo foi de 12,5%, em média, quando comparado com o mesmo período de 2019, porém o impacto final depende muito do comportamento de cada classe de consumidores; b) o pagamento da “inadimplência”, que segundo dados da ANEEL está em 10,2%; c) as diferenças dos aumentos de tarifas autorizados pela ANEEL que foram postergados para entrar em vigorar a partir de julho de 2020; d) as diferenças entre a demanda contratada e consumida dos grandes consumidores de alta tensão (Grupo A); e) o valor dos “encargos setoriais” previstos para 2020 que não forem recolhidos em função da crise; e f) um acréscimo de 10% sobre a quota extraordinária para uma reserva de valor.
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O montante final da dívida a ser contraída ainda é um tema aberto que, certamente, tem como objetivo ocultar a demanda desse setor. Até o momento, por meio da Consulta Pública nº 35, a ANEEL estabeleceu que a primeira ajuda às empresas fosse limitada à R$ 15,29 bilhões e que os impactos econômicos da pandemia devem ser tratados em uma segunda fase da consulta pública.
Para “passar a boiada” toda, a própria agência reguladora assegurou que “eventual necessidade adicional de recursos” deve ser “informada e requerida à ANEEL para as providências cabíveis”. Vale destacar que algumas projeções indicam que o déficit do setor pode alcançar em torno de R$ 4,5 bilhões/mês o que poderia significar enorme rombo até o final do ano.
Aqui, convém fazer uma breve explicação sobre o modelo energético vigente. Após a privatização da eletricidade, estruturou-se no país o “modelo de mercado” que possui como bases centrais de organização centenas de contratos comerciais dimensionados pelo regime tarifário de preço-teto e um sistema de financiamento (project finance) que é assegurado integralmente nas receitas das usinas, linhas de transmissão e distribuidoras e tudo ancorado no Ambiente de Contratação Regulado, ou seja, nas tarifas finais dos consumidores cativos.
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Assim, os agentes empresariais proprietários da energia ficam protegidos de qualquer crise de lucratividade, mesmo em tempos de pandemia. Como se estivessem no interior de uma bolha, protegida e assegurada pelas contas de luz dos 85 milhões de consumidores residenciais urbanos, rurais, unidades comerciais e industriais de pequeno e médio porte, entre outros. E, todas as vezes que são ameaçados na manutenção dos seus lucros extraordinários, o estado brasileiro, especialmente através da ANEEL, lhes assegura a transferência dos custos das denominadas crises, vias reajustes e revisões tarifárias, para os consumidores que compram eletricidade das empresas distribuidoras.
Esse mecanismo financeiro de privilégio empresarial via endividamento indicado no decreto não é novidade. Já foi utilizado em 2014 por meio da Conta no Ambiente de Contratação Regulada (Conta ACR), quando um grupo de 14 bancos realizou três empréstimos no montante de R$ 21,2 bilhões, que foram cobrados nas contas de luz em 54 meses (até junho de 2020) e, como resultado, receberam mais R$ 17,5 bilhões de juros, taxas e encargos administrativos. Uma extraordinária operação financeira parasitária do capital portador de juros, combinada com os interesses empresariais de toda a cadeia produção eletricidade e regulada pela ANEEL
Porém, em 2014, o setor vivia uma crise de proporções muito menores e, mesmo assim, ao longo de 48 meses, causou mais de 80% de aumentos nas tarifas das principais distribuidoras do país, por meio de reajustes, revisão extraordinária e bandeiras tarifárias.
Apesar de sua natureza diferente, a proporção da atual crise não tem precedentes e se tiver que ser suportada por meio das contas de luz, devemos nos preparar para aumentos extraordinários por longo tempo.
Não devemos pagar nada
As soluções apresentadas pelo governo quanto à eletricidade visam apenas proteger e garantir o “equilíbrio econômico e financeiro” e a extraordinária lucratividade de todos os “agentes do mercado”, a saber: os acionistas proprietários das usinas, das linhas de transmissão e distribuição; o sistema financeiro controlador de extraordinária dívida líquida que faz uma verdadeira rapinagem via juros embutidas nas tarifas de luz; as seguradoras e administradoras; os grandes consumidores livres e de alta tensão; as instituições de Estado e governos que recebem altos tributos, entre outros.
O mecanismo usado pelo governo para cobrar o rombo da crise no setor será a conta de luz da população. Para amortecer o impacto dos aumentos, a cobrança de todo volume financeiro (montante principal, juros, encargos e tributos) passará a ser cobrada nas tarifas de energia a partir de primeiro de janeiro de 2021 e permanecerá pelo tempo necessário para pagamento integral de todo volume financeiro.
Os aumentos futuros nas tarifas dificultarão ainda mais as medidas de proteção à vida dos trabalhadores e trabalhadoras, a retomada da economia e a geração de empregos. Será muito difícil sustentar a recuperação de uma economia se existe um terço do setor elétrico ocioso privilegiando o sistema financeiro parasitário, que encarece cada vez mais os custos da eletricidade de nosso país.
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Uma das maiores contradições da indústria de eletricidade brasileira é o alto preço da energia elétrica aos consumidores residenciais e aos setores médios e pequenos da economia. Produz-se a baixo custo e as tarifas finais situam-se nos níveis mais altos do mundo, situação que se agravará ainda mais.
Por isso, é legítimo e direito da massa trabalhadora proteger sua vida e não pagar nenhum centavo para salvar a lucratividade extraordinária dos grupos econômicos que monopolizam e controlam nossa energia.
Mesmo que as contradições das tarifas tenham sido sistematicamente ocultadas nas explicações oficiais dos agentes que determinam a política energética nacional, há momentos na história que elas se impõe e se revelam de forma aberta.
Por isso, abre-se uma provável janela que exigirá uma profunda reorganização da indústria de eletricidade, sob base proletária e a serviço de um projeto soberano de nação, capaz de superar as estruturas hegemônicas de mercado e colocar a vida acima do lucro.
* Gilberto Cervinski é membro do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Mestre em Energia pela UFABC.