Estaria tudo perdido não fosse uma senhora que conversa com Deus descobrir a solução contra o vírus
Numa tarde perdida do começo dos anos 1970 – quando a maioria de vocês que me leem não era nem um brilho no olho dos pais – eu trabalhava num diário do interior do Rio Grande do Sul e chegou às minhas mãos um pedacinho de papel. Estava começando como jornalista mas já sabia que, na época, pedacinhos de papel tinham, por vezes, mais informações do que um jornal inteiro. Aquele pedacinho avisava que estava proibido publicar qualquer coisa sobre “a epidemia de meningite em São Paulo”.
Nem eu nem o resto da redação tinha, até então, qualquer conhecimento sobre aquilo. Ficamos sabendo pelo remetente daquele pedacinho de papel, o Departamento de Censura Federal. Que cumpriu, perante os jornalistas, a missão que os jornalistas estavam impedidos de cumprir perante seu público.
Era 1974 e o general Garrastazu Médici tinha cedido o comando para o general Ernesto Geisel. Adversários mais encarniçados da ditadura estavam mortos, presos, escondidos ou exilados, mas a meningite tinha livre trânsito e parco combate.
O primeiro surto de meningite meningocócica veio no mandato Médici. Era do subtipo C e começou em abril de 1971. A ele juntou-se, em maio de 1974, o subtipo A, bem mais agressivo. Já era Geisel no poder.
Avisados em 1971, os militares se recusaram a admitir a epidemia, evento que comprometeria o ôba-ôba da propaganda oficial do Brasil Grande. E a meningite avançou país afora. Havia 67 mil casos em sete estados. Parece pouco diante dos totais do coronavírus mas a letalidade do meningococo é, pelo menos, cinco vezes maior e vitima muitas crianças.
Em São Paulo, as sirenes só soariam quando a peste arremeteu contra os bairros nobres e não foi possível mais ocultar as mortes. Em 1975, o Brasil compraria 80 milhões de doses de vacina da França promovendo uma imunização maciça.
Quase 50 anos depois, outro general resolveu lidar com outra epidemia colocando números em cárcere privado, torturando-os e promovendo a desaparição forçada da informação.
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Não é um general como Médici ou Geisel. Recebe ordens de um capitão que entendeu que os mortos estavam sendo irresponsáveis ao decidirem morrer na quantidade de mais de mil a cada dia. A ordem do capitão foi transmitida ao general que a repassou aos finados que não tiveram outra alternativa a não ser ressuscitarem.
Uma terapia mais confiável que a da química oferecida pela cloroquina. Foi então, com a ajuda dessa cloroquina aritmética, impedindo os mortos de morrerem impatrioticamente e ao seu bel prazer, que Bolsonaro resgatou a esplêndida e tão duramente construída imagem da sua regência.
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Assim estávamos quando o ministro Alexandre de Moraes, do STF, meteu-se com sua colher, vetando a cloroquina numérica e atrapalhando a convalescença dos falecidos.
Estaria tudo perdido não fosse uma piedosa senhora que conversa com Deus descobrir a solução para aniquilar o coronavírus. Ela foi ao palácio e apresentou ao presidente as virtudes milagrosas do enxofre, material, aliás, que borbulha em lagos do Inferno. Estamos todos salvos.
Edição: Rodrigo Chagas