Após semanas de distanciamento social, diversas cidades brasileiras iniciaram a retomada das atividades econômicas nos últimos dias, determinando uma “nova realidade” ao convívio da população.
Em São Paulo, por exemplo, estado que registrou número recorde de mortes pela covid-19, a reabertura do comércio de rua e de imobiliárias foi autorizada a partir desta quarta-feira (10).
O relaxamento das restrições também acontece no Rio de Janeiro, em Fortaleza, Belém, Manaus e Recife, capitais que continuam apresentando número de óbitos ascendentes embora as autoridades justifiquem a execução dos planos de reabertura com base nas taxas de ocupação das Unidades de Terapia Intensivas (UTIs).
Mas, em um contexto tão preocupante e sem precedentes, como se comportar e voltar às ruas nesse momento?
A angústia tem sido vivida diariamente por Cristiano Fernandes, que mora em Belo Horizonte, uma das primeiras capital a decretar a quarentena assim que a pandemia chegou ao país. Bancário, atividade considerada essencial, trabalhou durante a quarentena no esquema de rodízio, uma semana home office e outra presencial.
Ele relembra que nas semanas anteriores em que se deslocou à agência bancária, o fluxo nas ruas era realmente menor. Mas agora, com a segunda fase de flexibilização do isolamento iniciada essa semana, a realidade é outra.
A quantidade de pessoas aglomeradas nos ônibus e nas ruas, por exemplo, é nítida.
“Nas primeiras semanas que BH parou, as pessoas estavam cumprindo o isolamento à risca. A agência ficava jogada às traças. Não tinha ninguém pra atender. E aos poucos foi aumentando gradativamente e hoje foi o boom. Muita gente chegando, o tempo inteiro. Na hora do almoço tinha fila pra entrar na sala dos caixas eletrônicos”, diz Cristiano, preocupado.
Apesar de ter que sair para trabalhar, o bancário não se sente confortável para fazer outras atividades além das essenciais. "Não tem segurança pra sair e nem pra encontrar alguém, amigos. Não me sinto seguro pra fazer isso. Vi uma aglomeração de motoboy pegando comida no restaurante e muita gente sem máscara”, lamenta.
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Mesmo com o relaxamento das restrições, o ritual de higienização para evitar a contaminação pelo coronavírus ao voltar pra casa segue o mesmo.
“É uma neura. Eu tiro o sapato na porta e borrifo álcool na sola, levo pra secar na janela. Limpo tudo assim que eu chego. Carteira, celular, maçaneta da porta, com solução de água sanitária e álcool. Tiro a roupa e já vou tomar banho. Estou bastante neurado”.
Orientações
Segundo o médico epidemiologista André Ribas Freitas, professor da Faculdade de Medicina São Leopoldo Mandic, de fato é preciso estar ainda mais atento às medidas de higiene com o relaxamento das restrições, já que a transmissão tende a se intensificar.
O risco está alto e não há indicações que a reabertura está controlada. Estamos vendo cidades que estão reabrindo com aglomeração de pessoas muito próximas uma das outras.
O especialista destaca que manter o distanciamento social o máximo possível, usar máscara de proteção da forma adequada, lavar as mãos e aplicar álcool gel sempre que possível continuam como orientações indispensáveis.
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Na avaliação de Freitas, a flexibilização nas cidades brasileiras é precoce e pode trazer danos graves à saúde pública.
“O risco está alto e não há indicações que a reabertura está controlada. Estamos vendo cidades que estão reabrindo com aglomeração de pessoas muito próximas uma das outras. Temos que entender que a reabertura está vindo na Europa porque eles conseguiram controlar de fato a doença, caiu o número de casos. Aqui não caiu, segue aumentando. Não é o tempo que ficou de quarentena que determina se está na hora de voltar ou não, é a queda da transmissão”, explica.
“Só podemos flexibilizar quando a tendência é de queda no número de casos diários e quanto diminui a taxa de internação hospitalar”, endossa o médico.
Medidas insuficientes
Citando a China, país onde teve início a pandemia e que conseguiu alcançar o fim da transmissão local do vírus, o epidemiologista reforça que é possível combater a pandemia de forma eficaz, mas discorda das políticas tomadas até o momento.
“O objetivo no Brasil é ter um nível de transmissão suficientemente baixo de modo a não esgotar os recursos hospitalares. Implicitamente os governos municipais e estaduais estão transmitindo essa informação. É uma meta pouco ambiciosa. A melhor meta deveria diminuir ao máximo a transmissão”, argumenta.
Freitas reforça que enquanto a preocupação para a flexibilização ou não se baseia na taxa de ocupação de UTIs, a prioridade deveria ser o isolamento social para brecar a transmissão, e não remediar suas graves consequências.
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O epidemiologista afirma ainda que para a reabertura deveria existir uma infra-estrutura articulada entre poder público, comércios e principalmente sistema de transporte, com marcações que pudessem indicar a distância necessária em que as pessoas devem permanecer uma das outras, por exemplo.
A melhor meta deveria diminuir ao máximo a transmissão.
De acordo com ele, isso não tem sido registrado nas capitais brasileiras de forma ampla, apenas em grandes centros comerciais e redes de supermercados, enquanto pequenos e médios comércios voltaram à normalidade sem as adequações necessárias.
“O cuidado com esses espaços físicos não está sendo visto. Vemos pessoas nas ruas, muitas vezes com máscara no queixo, menos de dois metros e voltando à rotina anterior. Não pode. Voltar ao normal agora significa diminuir o número de mortes e termos um distanciamento social com o comércio funcionando. Não significa voltar a juntar todo mundo no estádio do futebol. Não está na hora de aglomerar as pessoas no centro da cidade e fazer como fazíamos antes”, alerta.
Outra experiência
Diferentemente do Brasil, um cenário mais cuidadoso de transição para a normalidade tem acontecido no continente Europeu. É o que relata a estudante de arquitetura Júlia Fontão, que mora atualmente em Turim, capital de Piedmont, no norte de Itália.
Intercambista, a jovem chegou à cidade poucos dias antes da quarentena ser decretada no país, que ocupa o quarto lugar no ranking global de vítimas fatais do coronavírus com mais de 34 mil óbitos.
Agora, um mês após o fim da quarentena fechada, ela conta que os parques e espaços verdes foram abertos gradualmente. Atualmente lojas, restaurantes e cafés também funcionam normalmente.
“Na minha percepção, está tudo normal. Dá pra ir pra rua, as pessoas estão usando máscara ao ar livre mas não é obrigatório. Os restaurantes funcionam, tem que agendar antes. Fomos outro dia e sentamos todos juntos, não tivemos problema”, afirma Júlia.
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Ela detalha ainda que mesmo com baixo número de contaminações, em espaços fechados, o uso de máscara continua obrigatório e a permanência em comércios é de uma pessoa por vez.
A estudante não tem dúvida de que a quarentena rígida é o que permitiu o retorno ao cotidiano enquanto a pandemia cresce em outros países.
“Tinha um controle severo na rua, tinha que levar declaração. De onde estava indo, para onde iria, com uma justificativa, horário pra sair de casa e tudo. Saímos, chegando em casa lavo a mão, passo o álcool gel e todos os cuidados, mas está muito mais tranquilo. Estamos nos sentindo confiantes de sair. Não estou mais com medo de pegar [o coronavírus]”.
"Mar de incertezas"
Além de possíveis consequências para a saúde física, nesse novo momento de reabertura, os desafios também estão colocados para a saúde mental da população.
A psicóloga Stefhane Santana, especialista em saúde mental, explica que o contexto inédito da pandemia trouxe mudanças drásticas e radicais que inevitavelmente impactam o psicológico e o bem-estar da população.
Segundo ela, durante esse período atípico o aumento de sintomas como estresse pós-traumático, ansiedade, tristeza, uma irritabilidade maior, assim como a de substâncias psicoativas, tem sido registrados com frequência.
Dificuldade de concentração, exaustão e insônia também são sintomas relatados, principalmente entre profissionais de atividades essenciais como os trabalhadores da área da saúde, que estão na linha de frente no combate à covid-19.
O retorno ao “normal” após a quarentena é definido pela especialista como um “mar de incertezas”.
“É possível que essa tensão causada pela reabertura, que ao que tudo indica se mostra ainda precoce, possa provocar a intensificação de sintomas de estresse pós-traumático principalmente, que podem ser sentidos física e psicologicamente, como irritabilidade, dificuldade de concentração e dificuldade no sono. Taquicardia, tonturas. Pode desencadear uma série de sintomas e por isso é importante que haja o fornecimento de informações adequadas à população, com transparência, na tentativa de conscientizar o povo e diminuir a sensação de medo e insegurança”, diz Santana.
Para esse período de transição, a psicóloga integrante da Rede Nacional de Médicos e Médicos Populares, aconselha voltar a atenção para ações altruístas e solidárias, que possam reforçar experiências benéficas da quarentena. Manter contato constante com pessoas queridas e ter o cuidado coletivo como norte são outros caminhos.
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Stefhane orienta ainda que o acompanhamento psicológico e sintomas de sofrimento mental não sejam negligenciado em meio a tantas adaptações.
“É importante ter a consciência de que os sintomas estiverem afetando a funcionalidade das atividades diárias é preciso estarmos atentos para buscar ajuda especializada, profissional. Precisamos estarmos abertos a esse novo período que se apresenta e às formas em que lidaremos com ele. É preciso estar atento e reconhecer, se for o caso, a busca por ajuda”.
Retorno à normalidade
Frente ao crescimento exponencial de casos em território nacional, o médico epidemiologista André Ribas Freitas critica o posicionamento de Jair Bolsonaro, que segue defendendo o fim do distanciamento social.
Para ele, a postura do presidente confunde a população e atrapalha os esforços dos profissionais de saúde para frear a pandemia.
“Com esse tipo de irresponsabilidade, vamos ter o prejuízo econômico, o comércio fechado, mas como não seguimos as medidas com o rigor que deveria ser feito, tem o prejuízo epidemiológico. É o pior cenário. Aquele que tem prejuízo de vidas humanas e o prejuízo econômico”, comenta.
Freitas acredita que a perspectiva para as próximas semanas são negativas e declara que não é possível visualizar o chamado retorno à normalidade. O próprio conceito do que significa “pós-pandemia” está em discussão. Isso porque, a partir de outras pandemias, como a da influenza, é possível que ciclo de transmissão dure por anos ou voltem a se repetir.
“Não vai haver uma situação de tranquilidade absoluta ou de relaxamento, inclusive na questão da máscara, enquanto não houver vacina. Não adianta. Ou um tratamento específico que seja eficaz, não bizarrices como cloroquina. Um tratamento efetivo que seja utilizado em saúde pública”, diagnostica o epidemiologista.
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Edição: Rodrigo Chagas