Ainda que as crianças façam parte do grupo de menor risco diante da pandemia causada pela covid-19, também estão tão suscetíveis aos impactos da situação na saúde mental quanto os adultos e idosos.
Os efeitos nas crianças podem ser observados de maneira acentuada quando se soma às desigualdades econômicas que desembocam em condições de vulnerabilidade sobre a experiência da infância.
É partindo da constatação desse cenário que o Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Cepedes/Fiocruz), lançou a cartilha “Crianças na pandemia covid-19”, que faz parte da série “Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia Covid-19”, sob coordenação da pesquisadora Débora Noal e de Fabiana Damásio, diretora da Fiocruz Brasília.
O objetivo da cartilha é apresentar os fatores de alterações emocionais e comportamentais apresentadas pelas crianças durante a pandemia, além de abordar casos específicos como aqueles que envolvem refúgio, migração e deficiência física e intelectual.
De acordo com Débora Noal, pesquisadora da Fiocruz que falou com o Brasil de Fato sobre o cartilha, entre as reações mais observadas nas crianças durante a pandemia estão maior irritabilidade, alteração do padrão de fome e sono, medo e comportamentos mais agressivos. Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: O que é e qual é o objetivo da cartilha?
Débora Noal: Essa cartilha é um compilado de uma grande visão temática com mais de 2 mil artigos sobre os impactos, as reações mais comuns, o mais frequente, com relação à epidemias, mas principalmente a essa pandemia de covid-19.
Tem algumas experiências e alguns indicadores que nós trouxemos das epidemias como Sars e Ebola, mas é principalmente um grande compilado desses materiais das reações mais comuns e também com ferramentas e dicas aos pais ou cuidadores o que e como fazer, se aproximar das crianças, entender como elas expressam sofrimento nesse tipo de pandemia, e o que fazer a partir disso.
Lembrando que essa cartilha é uma junção de muitos pesquisadores de várias universidades, principalmente das federais brasileiras, mas também de convidados nacionais e internacionais.
O objetivo dessa cartilha é apresentar quais são os aspectos referentes à saúde mental e atenção psicossocial nas crianças que estão vivenciando a covid-19. E, nessa cartilha, nós destacamos em particular essas expressões que estão relacionadas à intensificação das interações familiares, articuladas à fragilização do funcionamento das redes de apoio, já que a maior parte das famílias não pode contar com a creche, as escolas, a rede de apoio afetivo, os avós, tios, vizinhos, amigos.
E além disso nós enfatizamos como promover essa atenção às crianças que têm demandas específicas de saúde, e também as crianças refugiadas, migrantes. Esse também é um grande diferencial dessa cartilha: abordar outros públicos.
Que tipo de reações as crianças podem ter frente à pandemia?
Cada criança tem sua forma de demonstrar sofrimento e normalmente esses cuidadores mais frequentes, pais e mães, que estão mais próximos da criança, já conseguem identificar quais são essas características, de como costumam se alterar no comportamento da criança.
Mas lembrando que em termos estatísticos, das reações mais frequentes, nós destacamos a dificuldade de concentração, irritabilidade maior, a criança acaba com comportamentos mais agressivos às vezes, tendo manifestações que não teria fora da pandemia, crianças que acabam demonstrando muito mais medo, de escuro, da noite, de sair de dentro de casa.
Para as crianças maiores é muito comum a sensação de tédio. Então em crianças que já estão acostumadas a algum nível de independência, a tendência é que tenham um tédio maior. Sensação de solidão para algumas. Alteração de padrão de fome e alimentação é extremamente comum.
Então as crianças, às vezes, têm mais dificuldade para dormir, transtorno de alimentação, não querem comer mais nada ou só os mesmos alimentos. Muitas vezes uma criança que não chupava mais o dedo e nem usava mais fralda, acaba regredindo a um comportamento como esse. Todas essas reações são consideradas esperadas em um momento de pandemia.
E em relação às crianças refugiadas? Há alguma diferença?
Algumas diferenças em relação às crianças refugiadas é que normalmente elas já vêm sem essa rede apoio socioafetivo. Inclusive, tem mais dificuldade de ver qual é a alteração de comportamento porque não tem essa rede desde as estruturas básicas, não tem alimentação, local para dormir. Então tem muito mais dificuldade de ter acesso à lavagem das mãos, do sabão.
E muitas vezes dificuldade de expressão através da cultura. Muitas vezes os cuidadores não são pai e mãe, têm essa relação institucionalizada ou está em um abrigo, casa de passagem, e muitas vezes culturalmente a gente vai precisar entender qual é a expressão de sofrimento daquela cultura.
Lembrando que não existe um refugiado único. A gente tem uma série de culturas diferentes dentro da mesma estrutura. Então [o desafio é] tentar fazer essa leitura dentro desse grande diferencial que são as várias culturas ao mesmo tempo.
Parte das nossas sugestões para essas crianças é tentar fazer pontes com a cultura, ou seja, quais são as estratégias e ferramentas que aquela criança daquela cultura específica utilizava antes da pandemia e antes da travessia de uma fronteira? Ou seja, como estabelecer pontes para que essa criança se sinta mais confortável na própria pele?
Esse é um ponto importante, estabelecer pontes com essas ferramentas que as crianças já utilizavam, e muitas vezes a nossa ponte vai ser o adulto mais próximo dela, então vai ser mais fácil de cuidar. Porquê? Porque muitas vezes essas criança já vêm de uma situação de violência, de institucionalização, de um risco eminente de morte. Então a aproximação de adulto, às vezes, fere mais ainda, ainda que esse adulto tente ajudar. Então muitas vezes o nosso trabalho deve se dar pelo adulto.
Como lidar com essas reações?
O primeiro passo para gente conseguir ajudar as crianças é tentar apoiar por meio de uma escuta sensível, o que a gente chama de escuta ativa. Aquilo que eu vejo, aquilo que eu escuto, que eu sinto de diferente... A capacidade que eu tenho, inclusive, de me aproximar corporalmente dessa criança. Sempre tentando incentivar a busca por apoio, junto aos pais, para essa promoção de práticas parentais positivas, ou seja, essa aproximação positiva dos familiares com essa criança.
Muitas vezes o que a criança precisa é da presença física. Mesmo que a criança não fale nada, só de ela saber que existe um adulto mais próximo e disponível, vai fazer muita diferença.
A melhor forma sempre de cuidar de uma criança é fazer com que os adultos em seu entorno, sejam os pais ou as pessoas responsáveis por essa criança, demonstrem o máximo possível de calma, tranquilidade e segurança, porque a criança aprende muito mais pelo comportamento do que pelas palavras. Não basta só dizer "fica tranquilo, fica calmo". O adulto vai ter que mostrar que naquele entorno dele está confortável dentro daquele estrutura, por mais difícil que seja nesse momento de pandemia.
O que é aceitável e o que deve ser tratado com ajuda médica? Quando é necessário um ponto de vista mais especializado?
Lembrando que nos primeiros três meses, que é o que a gente está vivendo ainda agora, as reações são consideradas esperadas, e a gente quer, inclusive, que a criança demonstre mais irritabilidade, confusão, dificuldade para se concentrar. A gente espera isso, a gente vai mudando nosso comportamento.
Alguns critérios vão servir para determinar se aquele comportamento já começa como uma reação que vira um sintoma e que pode vir a desencadear alguma psicopatologia, principalmente se são sintomas persistentes, se é um sofrimento intenso que a criança não consegue brincar mais, se relacionar, deixa de se alimentar... Nesse momento, a gente começa a pensar na possibilidade de alguma complicação.
Para algumas crianças, muitas vezes, acontece a auto agressão e agressão a outras crianças, automutilação. Então essas são informações de alerta para o adulto começar a pensar já numa possibilidade de buscar um auxílio especializado.
Então lembrando que há um comprometimento significativo do funcionamento social do cotidiano, mais dificuldade nas famílias, não tem uma rede de suporte. A mãe ou pai já se sente no limite, que não tem mais a possibilidade de conseguir ajudar. Às vezes existem nas famílias problemas relacionados, por exemplo, a dependência de álcool ou outro tipo de droga. Às vezes depressão, psicose. Isso tudo a gente já vai pensando em um encaminhamento mais rápido.
Edição: Leandro Melito