A “advertência” militar para “não esticar a corda” é acintosa à Constituição e à República
Por Martonio Mont'Alverne*
Nos protestos antifascistas do Brasil ou nos conflitos antirracistas recentes dos EUA, decorridas semanas de suas manifestações mais incisivas, surgem como sempre os guardiões da “civilidade, da ética, do não partidarismo” dos protestos. Se são protestos organizados por quem pede intervenção militar, hipótese claramente violadora da Constituição, por quem prega o fechamento do Congresso e do STF, estes são tidos como singelas e legítimas manifestações “pacíficas”.
O conteúdo da violência de tais palavras é assimilado como se consistisse na liberdade de manifestação de pensamento. Não o é! Sob a forma de grave atentado contra à Constituição e às leis é que esta violência deve ser enfrentada pela polícia e pelo poder do Estado encarregado de julgar, com as garantias constitucionais da ampla defesa.
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O paradoxo da tolerância já superou este problema, do ponto de vista filosófico, e a política democrática incorporou essa solução. Quem atenta contra a ordem constitucional democrática e pluralista não goza da proteção desta mesma ordem. Aceitar o contrário seria permitir que a democracia tolerasse a antidemocracia; que o parlamento fosse o “antiparlamento”; que o judiciário se transformasse no “antijudiciário”. Do ponto de vista realista, é óbvio que tais fenômenos podem ocorrer, como adverte o registro da história. O aspecto inequívoco para o caso da Constituição brasileira é que ela não permite que isso ocorra.
As recentes manifestações de membros do STF sobre o teor do artigo 142 apenas ratifica a ideia que já se tem a respeito do sentido da letra da Constituição: o poder civil eleito e colegiado é a autoridade última das forças armadas, as quais só podem agir com a ratificação daquilo que decide o Congresso Nacional. Em outras palavras: militares não têm autonomia; só podem deixar seus quartéis se a autoridade civil assim determinar. Militar obedece; jamais dará ordens sobre a Constituição e as leis; menos ainda se essas ordens envolverem aspectos políticos internos.
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A “advertência” militar para “não esticar a corda” é acintosa à Constituição, e aos poderes da República. O exemplo recente do Chefe do Estado Maior dos EUA é ilustrativo: os militares de lá deixaram evidente que não se permitirão ao uso político interno para satisfazer as intenções de um presidente. Não há nada na Constituição brasileira que sequer dê espaço para que se pense diferente. Quem o faz tem intenções escusas e golpistas, ou apoia referidas intenções. Para qualquer das opções deve ser aplicada a punição devida. E rápida. Agora que o STF parecer ter acordado do sono profundo, seria aconselhável uma ação mais eficaz e rápida, a fim de saldar parte da histórica dívida que tem com a democracia brasileira. Uma ótima oportunidade de trabalhar o seu passado: tanto o mais pretérito, como o mais recente.
Nos casos dos protestos recentes mundo afora, especialmente contra escravidão, formas de fascismo, racismo etc., a exigência pela reflexão sobre o passado tem sido a tônica. A derrubada de estátuas erigidas, a revisão de homenagens prestadas na forma de nomes de ruas, instituições e até de cidades mostram que as sociedades precisam confrontar-se com seu passado; e não o rejeitar como se este passado não existisse, ou como se apenas “fossem tempos diferentes”.
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Sempre houve quem chamasse atenção para as atrocidades cometidas; sempre houve vozes sufocadas pela violência que advertiam dos erros de seus contemporâneos. Por isso que estes conflituosos protestos são bem vindos para a democracia. Reescrever a história é ofício cotidiano dos imprescindíveis historiadores. Revelar além do aparente é a tarefa primeira da ciência, que seria desnecessária se nada houvesse além da superfície das aparências. Também por esta razão é que se deve respeitar os cientistas da história, que nos esclarecem sobre nosso passado, para compreendermos o presente, na perspectiva de um futuro melhor. A resistência contra fascismo e racismo do Brasil e do mundo nestes dias é alvissareira. Não há democracia sem conflito, e na construção do novo teremos de enfrentar aquilo que sabemos que não mais queremos. Porque história e historiadores já nos mostraram.
*Martonio Mont'Alverne Barreto Lima é professor titular da Universidade de Fortaleza, procurador do Município de Fortaleza e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Edição: Rodrigo Chagas