Na última segunda-feira (9), o cartunista Renato Aroeira se tornou alvo do novo ministro da Justiça, André Mendonça, que ordenou à Polícia Federal a abertura de uma investigação com base na Lei de Segurança Nacional. Isso porque Aroeira publicou, no portal Brasil 247, uma charge em que transforma a cruz vermelha, símbolo da emergência dos hospitais, em uma suástica - ícone do nazismo. A charge foi desenhada em analogia à declaração do presidente Bolsonaro (sem partido) que incentivou aliados a invadirem hospitais para comprovar a internação de pacientes com covid-19.
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Esse não foi o primeiro episódio de intimidação de Aroeira e de outros cartunistas com a ascensão de Bolsonaro ao Planalto. Ainda durante a campanha eleitoral, diversos cartunistas têm relatado investidas do atual presidente e de seus apoiadores.
O cartunista Vitor Teixeira é um dos que se tornou alvo no último período: foi processado pelo empresário Luciano Hang, dono da rede Havan, durante a campanha, em 2018, e também teve a sua conta do Instagram retirada do ar após ser denunciada por grupo de apoiadores de Carlos Bolsonaro no ano passado.
“Desde o golpe de 2016, a perseguição aumentou, tanto pelos aparatos do Estado, como por bandos virtuais alimentados pelo bolsonarismo. Fazer humor gráfico no Brasil ficou mais fácil na verdade, por conta da quantidade de absurdos a serem retratados, mas se tornou muito mais arriscado”, avalia em entrevista ao Brasil de Fato.
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Na última terça-feira (16), Vitor teve diversos conteúdos retirados do ar pelo Facebook com a justificativa da rede social de que "violam os padrões da comunidade sobre organizações e indivíduos perigosos". Todas as charges faziam críticas ao governo Bolsonaro e a crise do novo coronavírus.
O episódio acontece na semana em que está em debate no Senado o Projeto de Lei 2630, conhecido como “PL das fake news”. Organizações da sociedade civil têm feito campanha contra a aprovação do projeto que ameaça direitos essenciais como a privacidade e a liberdade de expressão com a justificativa de combater fake news. Um dos pontos problemáticos do texto torna legal que a administração das redes sociais possam derrubar qualquer postagem.
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"Penso que a coisa está no início apenas e se as organizações populares não agirem, a arte, o humor e a crítica não serão mais permitidos no Brasil", avalia Vitor.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato - Essa é a primeira vez que você tem conteúdos colocados fora do ar? Como avalia essa gerência do Facebook?
Vitor Teixeira -Já sofri dezenas de bloqueios por parte do Facebook, que começaram com restrições de apenas um dia, mas que agora me impedem de publicar por meses. A perseguição é idêntica no Instagram, que é outra rede social da mesma empresa. Basta ter um desenho com acessos expressivos que o risco de ser censurado é iminente, ainda mais quando se utiliza de recursos visuais mais incisivos. Nudez, violência e especialmente o uso de suásticas na crítica gráfica são quase uma garantia de que a charge será derrubada.
O bloqueio geralmente ocorre por conta da denúncia em massa feita por bandos virtuais. Essas denúncias são analisadas pelo algoritmo do Facebook e nós, pequenos produtores de conteúdo, temos pouco a fazer além de acatar. Depois de muitos bloqueios, minha página no Instagram foi sumariamente deletada. Eu consegui recuperá-la depois de entrar com uma ação contra o Facebook, cuja liminar determinou que a conta fosse devolvida imediatamente. Pedi danos morais pelo bloqueio, ganhei na primeira instância, eles recorreram e agora aguardo o julgamento na segunda.
Nesta semana, em que você teve os conteúdos bloqueados pelo Facebook, está em debate no Senado o “PL das fake news”, com diversos pontos controversos. Entre eles, a validação da gerência das redes sociais como juízes do que pode e que não pode ser postado. Qual a sua leitura sobre esse ponto do PL?
Temo que essa lei possa dar um traço ainda mais autoritário às plataformas, que já são pouco democráticas, para que se faça uma curadoria ditatorial do que pode e do que não pode ser publicado. Artistas que incitam polêmicas, que buscam incomodar a audiência com trabalhos controversos, que são mais “irresponsáveis”, certamente terão seus trabalhos impossibilitados de circularem. Me parece que é um tiro no pé.
Você e outros cartunistas foram acionados na Justiça pelo empresário Luciano Hang, dono da Havan, por conta de desenhos e sátiras que o criticavam no período eleitoral. Como ficou esse processo e como vê essas ações?
Fui processado nas esferas cível e criminal. Na ação cível me foi pedida uma indenização de R$ 25 mil por crime de “discurso de ódio” e na criminal, R$ 10 mil por crime contra a honra. A cível foi arquivada e na criminal o Ministério Público interviu e determinou o pagamento de uma taxa de transação penal de R$ 1 mil. Esse recurso só pode ser utilizado uma vez a cada cinco anos, ou seja, se eu for processado novamente, terei que levar a ação para instâncias superiores. No caso de uma derrota em futuros processos criminais, eu deixaria de ser réu primário por conta de um desenho.
Na última segunda-feira (15), por conta de uma charge criticando Bolsonaro, o cartunista Renato Aroeira se tornou alvo do ministro da Justiça. Na sua avaliação, fazer charges críticas no governo Bolsonaro se tornou mais difícil?
Desde o golpe de 2016, a perseguição aumentou, tanto pelos aparatos do Estado, como por bandos virtuais alimentados pelo bolsonarismo. Como já mencionei, no ano passado perdi minha conta do Instagram, após uma investida de Carlos Bolsonaro, que usou as contas de seu primo Índio e de sua cadelinha Pituka Bolsonaro para denunciar uma charge minha. Também em 2019 um professor de Campos dos Goytacazes foi afastado pelo governo do estado do Rio de Janeiro por usar um desenho meu em sala de aula. Esses dois casos, somados ao processo do Luciano Hang, aconteceram depois da eleição que colocou Jair Bolsonaro no Planalto.
Fazer humor gráfico no Brasil ficou mais fácil na verdade, por conta da quantidade de absurdos a serem retratados, mas se tornou muito mais arriscado.
Historicamente, cartunistas, jornalistas e escritores são perseguidos em regimes autoritários, como na ditadura militar no Brasil. Como vê a diferença entre a perseguição de hoje e do regime militar?
Estamos apenas no começo do que seria um eventual fechamento do regime. A perseguição de hoje aparenta ser pior, considerando que estamos apenas no segundo ano de um governo abertamente fascista. O verniz legal que o autoritarismo possui hoje é bem melhor do que a censura tosca dos gorilas de 1964. O aparelhamento da PF [Polícia Federal], do Ministério da Justiça, do Ministério Público, e leis como essa das fake news, podem dar recursos mais sofisticados para perseguir e prender cartunistas e jornalistas, sem que isso passe como autoritarismo.
Penso que a coisa está no início apenas, e se as organizações populares não agirem, a arte, o humor e a crítica não serão mais permitidos no Brasil.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Jaqueline Deister e Raquel Júnia