O Carnaval é também um ato de crítica política e de resistência; é nosso maior protesto de rua
A reflexão abaixo é resultado de uma intervenção que fiz no Festival Fervo 2020 – Arte, cultura, comunicação e política, que está em curso no mês de junho, que marca a celebração do orgulho LGBT, com transmissões ao vivo pelo Instagram e pelo YouTube:
Quando em penso em fervo, penso nas festas originárias de Salvador, feitas pelos coletivos Afrobapho, Batekoo e Tombo, que são eminentemente um local de resistência e de protesto de uma juventude negra, periférica, LGBTQIA* e universitária. Uma energia criativa, alegre, por vezes ácida e sempre questionadora.
Vinicius Alves nos diz em seu trabalho “Em defesa do fervo” como o fervo bebe em “referências das festas à brasileira, nos bailes, na contracultura e no tropicalismo, assim como no gueto dos anos 1980”.
O fervo é empreendido por jovens que passaram a ocupar as universidades, especialmente as públicas, a partir das políticas de ações afirmativas dos anos 2000, tão fundamentais para mudar a cara do ensino superior no Brasil. Muitos fazem parte da primeira geração da família a ingressar na universidade brasileira e eu os/as/xs conheço das salas de aula da UFBA.
A festa, afirma Rita Amaral, “é uma das linguagens favoritas do povo brasileiro, sendo ela capaz de, conforme o contexto, diluir, cristalizar, celebrar, ironizar, ritualizar ou sacralizar a experiência social particular dos grupos que a realizam”.
O Carnaval é essa experiência por excelência. Há uma visão corriqueira, influenciada por algumas pesquisas no campo da Antropologia, de que o Carnaval serviria como forma de contenção da população por permitir que, durante alguns dias por ano, as pessoas aliviem as tensões cotidianas e, sobretudo, possam “suspender” as hierarquias sociais que tanto marcam nosso país, tão desigual, racista, machista e LGBTfóbico.
Esses poucos dias, dizem, segurariam mobilizações massivas e fariam com que suportássemos o restante do ano.
Considero essa visão profundamente equivocada. O Carnaval, assim como outras festas, é também um ato de crítica política e de resistência. É nosso maior protesto de rua.
O que dizer, apenas para citar um exemplo notório e recente, dos últimos dois sambas-enredos da Mangueira? A rua é um espaço de disputa, de tradição, de espiritualidade, de questionamento – Luiz Antonio Simas fala muito bem sobre isso. As fantasias também.
Não é à toa que criticamos o uso de perucas blackpower ou de cocares: há uma mensagem sendo passada e que tem impacto social.
O Carnaval é um momento de dicotomia amor e dor, em que a desigualdade grita, como fica tão evidente com os cordeiros em Salvador, geralmente negros, separando outros negros/as de um pequeno grupo de brancos com abadás; ou diante dos milhares de trabalhadores/as ambulantes que vendem cerveja embaixo de sol forte ou madrugada adentro.
Falar de festa é difícil quando, ao já citado contexto de violência e desigualdade do Brasil, somamos a pandemia da covid-19, onde já somos o segundo país do mundo em número de contaminados e de mortos. Mortes essas que são desiguais, que atingem a população de maneira diferenciada.
Um vírus que chega pela elite, que tem acesso às viagens internacionais, atinge em cheio as periferias. Simbolicamente, a primeira pessoa que faleceu no Rio de Janeiro foi uma empregada doméstica. Também no Rio de Janeiro, o menino João Pedro, que pôde aderir à campanha #ficaemcasa, foi morto pela Polícia Militar dentro do próprio lar.
E o que dizer de Miguel, que morreu no Recife porque sua vida simplesmente não importava para uma representante da Casa Grande? E de Guilherme, que essa semana foi executado em São Paulo? O genocídio prossegue, também ele um vírus que contamina tudo.
Ainda assim, quando o ministro interino da Saúde – já completamos um mês sem Ministro da Saúde! – diz que os invernos no Norte e Nordeste do Brasil são como os do hemisfério Norte, nós conseguimos rir disso, fabricar memes e, por alguns minutos, aliviar a desgraça em que vivemos. Por quê?
Para a Psicanálise, o humor tem algo de liberdade, de grandeza e de elevação. Freud, judeu, ao refletir sobre o humor após todas perseguições sofridas pelo seu povo, escreve que “por meio do humor nós nos recusamos a sermos afligidos pelas provocações da realidade, a permitir que sejamos compelidos a sofrer”. Talvez quanto mais bem-humorado for um país, maior a dor de seu povo.
É esse o espírito que me vem quando penso no fervo. O fervo traz a geração tombamento, que se rebela ao afirmar que não irá tombar por bala, mas sim irá tombar ao deixar as pessoas de queixo caído. O fervo atualiza a combinação da alegria com resistência, luta e crítica social. Precisamos de respiro, de ideias, de propostas que nos sirvam de inspiração nesse momento tão difícil em que se impõe a política da morte. Precisamos ferver.
Edição: Leandro Melito