Ásia

Decretos pró-agronegócio assinados em plena pandemia revoltam camponeses na Índia

Produtores afirmam que governo de extrema direita “autoriza exploração” no campo e preveem agravamento da miséria rural

Brasil de Fato | Nova Delhi (Índia) |
Camponesa indiana em um arrozal em Assam, nordeste do país - Biju BORO / AFP

Federações de camponeses da Índia acusam o primeiro-ministro do país, Narendra Modi, de favorecer corporações do agronegócio em prejuízo do interesse nacional. As organizações populares questionam três decretos do governo, assinados em 5 de junho, que alteram as regras de estocagem e comércio de bens agrícolas no país. As mudanças limitam a regulação estatal sobre as transações entre produtores e grandes empresas compradoras de grãos e leguminosas.

Integrantes da União de Camponeses da Índia (AIKS, na sigla em inglês), da União de Trabalhadores da Agricultura da Índia e da Central Indiana de Sindicatos queimaram cópias dos decretos e fizeram uma paralisação nacional contra as medidas no último dia 10 de junho.

Segundo o secretário-adjunto da AIKS, Vijoo Krishnan, em entrevista ao portal indiano Newsclick, “as três mudanças autorizam o agronegócio a explorar os produtores rurais e abrem caminho para uma relação de escravidão”.

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As mudanças realizadas pelo governo Modi ocorrem em plena pandemia do novo coronavírus, que vem dificultando ainda mais o acesso a alimentos e agravando a fome em várias regiões do país.

Para o governo de extrema direita, no entanto, a “desburocratização” das regras deve resultar em maior produtividade, o que geraria benefícios para toda a cadeia. 

Krishnan lembra que essa mesma promessa foi feita em 1991, quando foram introduzidas políticas neoliberais em vários setores da economia indiana, mas “as condições de vida dos trabalhadores só pioraram”. A AIKS estima que 400 mil agricultores cometeram suicídio na Índia nos últimos 25 anos em decorrência dessas políticas.


Vijoo Krishnan, secretário-adjunto da AIKS / Praveen S./Brasil de Fato

Confira o que muda, na prática, com os três decretos assinados em junho.

Estoques e preços

Modi derrubou a Lei de Produtos Essenciais (ECA, na sigla em inglês), de 1955, que estabelecia limites à quantidade de grãos que comerciantes ou empresas poderiam estocar, além de regular preços. 

Cereais, óleos vegetais, sementes, batata e cebola deixam de ser considerados bens essenciais e terão estocagem regulada pelo Estado apenas em circunstâncias extraordinárias, como guerras e calamidades naturais. Limites de preços só poderão ser impostos quando houver aumento maior que 100% em produtos perecíveis e maior que 50% para itens não perecíveis.

A justificativa do governo é que a lei de 1955 foi assinada em um contexto diferente, em que itens essenciais estavam frequentemente indisponíveis no mercado. Hoje, no entanto, a quantidade ingerida de grãos e legumes por pessoa teria atingido um patamar seguro, e já não haveria necessidade de regulação.

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Conforme dados compilados pelo portal Newsclick, o consumo de leguminosas por pessoa na Índia caiu 22% nas últimas cinco décadas. “A remoção das restrições significará que grandes cartéis poderão estocar grãos em grande quantidade, provocando escassez e elevando os preços. Quem ganha são as corporações que especulam sobre os preços. É o lucro baseado na fome”, analisa o jornalista de economia Subodh Varma.

Cerca de 194 milhões de pessoas passam fome ou estão subnutridas na Índia, segundo dados de 2019 da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Compra e venda

Até 5 de junho, a venda de grãos e leguminosas na Índia só era autorizada nos Comitês de Comercialização de Produtos Agrícolas, espaços regulados pelos governos estaduais, que se responsabilizavam pelo licenciamento dos produtores e dos compradores.

Ao todo, funcionavam 7,2 mil comitês em toda a Índia. O objetivo era impedir o abuso de poder econômico por parte de grandes compradores.

Com o novo decreto, as negociações podem ser feitas em qualquer ambiente, sem regulação estatal e sem o estabelecimento de preços mínimos.

A mudança prevê um sistema de recursos legais a que os produtores rurais poderão recorrer caso se sintam constrangidos ou não recebam um preço justo. Federações de camponeses alegam que essa judicialização é impraticável, uma vez que os pequenos agricultores estarão “com a corda no pescoço” e não terão condições de enfrentar grandes empresas do setor nos tribunais.

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Contratos

O terceiro e último decreto flexibilizou as regras para estabelecimento de contratos de “venda fixa” entre produtores e compradores. 

Camponeses apontam que os novos dispositivos desprotegem o agricultor em caso de quedas abruptas de preços. Outro risco é que grandes corporações pressionem os produtores a cultivar determinados gêneros alimentícios, o que poderia alavancar preços e provocar indisponibilidade de outros produtos, obrigando o país a importar.

A AIKS divulgou, no início da semana, um calendário de mobilizações contra os três decretos. Novos dias nacionais de paralisação estão previstos para 23 de julho e 9 de agosto.

*Com informações do Newsclick.in.

Edição: Vivian Fernandes