Catadores que vivem em uma área de ocupação em Brasília (DF) protestaram, nesta segunda-feira (22), em frente ao Palácio do Buriti, sede do governo local, para cobrar políticas de moradia e acesso a emprego. Despejados na última sexta-feira (19) em uma ação orquestrada pela Secretaria de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal (DF Legal), os trabalhadores se queixam de falta de atenção estatal às necessidades da comunidade, que vive em uma área próxima ao Lago Paranoá. Segundo as lideranças locais, o terreno era habitado há cerca de três décadas e reúne 28 famílias.
“A gente propôs a eles um ano de aluguel e que a gente só sairia de lá com a moradia e um local de trabalho [garantidos], mas eles não responderam. Eu estou achando que a gente vai acampar lá [no palácio]”, disse a catadora Ivânia Souza Santos, uma das lideranças do grupo, que foi recebido nesta segunda pelo secretário de Atendimento à Comunidade do DF, Severino Cajazeiras.
O Brasil de Fato tentou ouvir o mandatário, mas não conseguiu contato direto com ele. A chefia de gabinete da pasta informou à reportagem que o caso das famílias foi encaminhado para a Secretaria de Desenvolvimento Social do DF para que elas recebam assistência da pasta.
Há pelo menos 30 crianças no grupo de famílias envolvidas no conflito, segundo levantamento feito pelo Movimento População de Rua, que acompanha a situação da comunidade. De acordo com Ivânia, diante da ação de sexta-feira, o governo ofereceu como opção o encaminhamento dos moradores para abrigos, mas os trabalhadores rejeitaram a proposta.
A gente vota nesses governantes pra depois ser abandonado.
“Não foi aceita essa questão porque a gente já sabe como é albergue. Tem todo tipo de gente, não só famílias, não só mãe com filhos. Todo tipo de pessoas tem lá e tem amiga minha que já foi até estuprada dentro de albergue”, relata a catadora, acrescentando que tais unidades seriam palco também de ocorrências de roubo.
“Aqui dentro da ocupação nós somos tipo uma família e a gente se sente mais seguro juntos”, disse a trabalhadora, que vive no local há dez anos com o marido e os três filhos, que têm entre 8 e 15 anos de idade. “Meu marido está aqui desde 1979 e, só pra você ter uma ideia, ele foi cadastrado no programa habitacional em 2000, mas até hoje não recebeu [uma unidade]. A gente vota nesses governantes pra depois ser abandonado”, critica a catadora, ao lamentar os anos de espera por uma casa.
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Despejo
O grupo se queixa ainda de uso de violência por parte de agentes do DF Legal na última sexta, quando ocorreu a ação de despejo. “Antigamente, quando eles vinham aqui, levavam as lonas, mas deixavam o colchão, os alimentos, as panelas, mas desta vez nem isso. Vieram e levaram tudo. Disseram que, se a gente tivesse algum parente, eles levariam nossas coisas pras casas deles, mas senão iriam levar embora pro depósito do governo e, pra tirar, a gente ainda teria que pagar multa. E, desta vez, ainda queimaram o acampamento. Eu me senti como se fosse um lixo, um nada”, narra Ivânia.
Desta vez, ainda queimaram o acampamento. Eu me senti como se fosse um lixo, um nada.
Um socioambientalista que faz trabalho voluntário na comunidade presenciou a ação dos agentes do governo. Sem se identificar por medo represálias, ele contou à reportagem que os representantes do DF Legal teriam feito provocações à comunidade, com ofensas e xingamentos, e que, alegando resistência dos moradores, acionaram a Polícia Militar (PM).
“Pra minha surpresa, a polícia não estava agressiva, e sim os fiscais da Agefis [antigo nome do DF Legal]. E era muita gente armada – revólveres, fuzis. Fiquei impressionado porque parecia uma operação de guerra, com vários caminhões. Foi muito revoltante ver como os trabalhadores foram tratados porque alguns foram truculentos. Eu fui conversar com um dos fiscais e ele não queria que eu chegasse perto do local, já foi logo me ‘carteirando’, mas ele não tinha poder de polícia ali. Eu questionei se eles tinham algum documento, ordem de despejo, algum papel ou decisão formal, mas ele só falou que era uma área do governo e que eles teriam que sair e pronto”, narra.
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Outro ativista que apareceu no local para ajudar os catadores disse ao Brasil de Fato que considera o despejo como “o maior escândalo do governo Ibaneis durante a pandemia”. “Imagine que eles tocaram fogo em tudo e desativaram a ligação de água da comunidade, que ficou no meio da fumaça, ao relento e sem água em plena pandemia”, denuncia o militante, também sem se identificar.
Era muita gente armada – revólveres, fuzis. Fiquei impressionado porque parecia uma operação de guerra.
O voluntário Kleidson Oliveira, do Movimento População de Rua, acompanha a comunidade há cerca de três meses e também presenciou a ação do governo na sexta. Ele conta que se surpreendeu com a postura de um dos fiscais ao abordar um morador com deficiência.
“Eu vi ele olhar pra um rapaz que não consegue andar direito e usa cadeira de rodas e dizer assim ‘você não é aleijado, não. Você está é disfarçando pra poder ficar mendigando. Tem que criar vergonha na cara e arranjar um trabalho’. Falou desse jeito. A irmã do rapaz tentou reagir e eles, covardemente, chamaram a PM”, relata Oliveira, endossando a versão dos moradores de que a violência ficou a cargo de fiscais do DF Legal.
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“Eles incitaram o ódio, chamaram os trabalhadores de ‘vagabundos’, ‘traficantes’, ‘lixo’. Dava pra ver o prazer deles em fazer isso. Eles pegaram comida e enterraram alguns materiais do pessoal também. Uma covardia danada”, critica o voluntário, que disse se impressionar com “a força das mulheres da comunidade”. “Ali é tudo lutadora”, frisa Oliveira.
Presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), o defensor público federal Renan Sotto Mayor também presenciou as cenas. A entidade disse que foi verificada ausência de plano prévio de remoção e assentamento das famílias. “Verifiquei hoje uma situação de total violação de direitos humanos. É muito triste ver a remoção de pessoas em extrema vulnerabilidade em um contexto de pandemia. Tentei conversar com as autoridades locais solicitando alguma possibilidade de acordo, todavia não foi possível”, lamentou o dirigente.
Eles incitaram o ódio, chamaram os trabalhadores de ‘vagabundos’, ‘traficantes’, ‘lixo’. Dava pra ver o prazer deles em fazer isso.
O órgão oficiou o Ministério Público Federal do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e a Defensoria Pública do DF para pedir providências, além de ter oficiado o governador, Ibaneis Rocha (MDB), para pedir que sejam assegurados os direitos humanos dos moradores.
Os voluntários e movimentos que acompanham o local agora estão preocupados com o destino dos moradores, que estão dormindo embaixo de lonas doadas e precisando de mantimentos e outros produtos. “Abrigo não é a solução pra eles porque é algo temporário. E depois eles vão pra onde? Ninguém fala sobre isso no governo”, afirma o socioambientalista que prestou socorro na sexta-feira.
Outro lado
O Brasil de Fato tentou ouvir o DF Legal por meio de sua assessoria de imprensa. O órgão disse que o ocorrido na sexta se tratou de uma operação de “de desobstrução de área pública” e que essa teria sido a segunda vez que a secretaria foi ao local. A pasta confirma o desligamento dos pontos de energia elétrica e água da comunidade, acusando os moradores de terem feito ligações clandestinas.
O órgão sustenta ainda que as famílias já seriam acompanhadas pelo Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e que algumas teriam residência em outro local. A secretaria não comentou as perguntas feitas pela reportagem sobre os relatos de violência e confisco de alimentos durante a ação e considerou que o despejo teria transcorrido “dentro da normalidade”. Também não respondeu as perguntas do Brasil de Fato sobre quem teria autorizado o despejo e qual o documento que deu a ordem para a ação.
A reportagem também tentou ouvir a Terracap, agência pública de terras apontada como dona do terreno. A assessoria informou que a área seria do governo “desde quando Brasília foi criada”, mas disse que não tinha o documento que oficializa a propriedade para apresentar ao veículo nesta segunda. Ao ser questionado sobre quem autorizou o despejo e se haveria alguma comunicação oficial a esse respeito, o órgão afirmou que “invasor de área pública não tem direito à indenização nem aviso prévio”.
Edição: Rodrigo Chagas