Não é que não há mais pudor na ignorância, na estupidez e na defesa da violência. Há orgulho
O ódio está nas ruas. Literalmente falando.
E não se trata, aqui do discurso que pode ser definido apenas como a expressão cujo conteúdo ofende a honra ou a imagem de grupos sociais, especialmente minorias, ou prega a discriminação contra os integrantes desses grupos. Mas de um problema que se relaciona com a intolerância, a impossibilidade da aceitação do outro, da divergência, da pluralidade. E nesse caminho, rejeita o funcionamento normal das instituições democráticas, quando as decisões não correspondem ao que desejam determinados atores.
O debate está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). Não por outro motivo senão porque foram os próprios juízes da Corte atingidos por "militantes” em defesa do fechamento das instituições, pela volta da ditadura civil-militar, pela decretação de novo Ato Institucional nº 5, com ofensas e ameaças às suas vidas e às de suas famílias.
O Inquérito nº 4.871, apelidado de inquérito das fake news, foi aberto em março de 2019, por ordem do presidente Dias Toffoli, com esteio no artigo 43, do Regimento Interno do STF, para apurar ameaças contra os ministros do Supremo e, desde o início, despertou críticas. O julgamento da ação que questionou a legalidade e constitucionalidade da investigação foi finalizado no dia 18 de junho último, com um único voto contrário, do ministro Marco Aurélio.
Quais os limites?
Vivenciamos um problema que assola a sociedade em sua complexidade. Um tema que perpassa o Direito e a Política. A interpretação dos discursos extremistas, que transpõem o plano mental e abstrato para o plano concreto, impõe verificar como o choque de princípios que coloca de um lado a liberdade de expressão e de outro o respeito pela dignidade humana e pela tolerância, como pedras angulares de uma sociedade democrática e plural é apenas aparente.
De fato, a proteção constitucional conferida à liberdade de expressão foi afirmada pelo poder constituinte originário como forma de garantir a democracia. A liberdade que todo cidadão tem de expressar suas opiniões, sejam quais forem, sobre qualquer assunto, compõe o valor fundante da liberdade em si mesma, como valor ético e direito político.
Por seu turno, o ódio é o alimento da falta de empatia, para além da indiferença. Dá voz a impulsos que proclamam o desejo de exterminar o outro do espaço público, pela incapacidade de tolerar a divergência. É quando a opinião ou as escolhas do outro transformam-se numa impossibilidade de suportar que ele exista, determinando a necessidade de que seja eliminado, seja fisicamente, como nos homicídios por homofobia ou preconceito racial, seja simbolicamente, extirpando-o do exercício de sua cidadania ou cargo público.
A liberdade é um bem inestimável, que deve conviver com outros valores éticos fundamentais, como corolário do princípio de que no direito nada é absoluto. O direito geral de liberdade funciona como um princípio de interpretação e integração das liberdades em espécie, e de identificação de liberdades implícitas na ordem constitucional.
O período mais contemporâneo tem acirrado a discussão sobre o uso da liberdade de expressão para ferir direitos constitucionalmente consagrados de outrem, o que atrairia limitação para atender aos demais valores que com a liberdade se chocam. Definir que critérios devem ser seguidos para decidir pela demarcação, ou não, do direito à liberdade, é tarefa sensível sob diversos pontos de vista, inclusive o jurídico.
O papel do Supremo
As manifestações de ódio, que se pulverizam e se ampliam sobremaneira com mensagens ofensivas e discriminatórias nas redes sociais e extravasa para as ruas, em cartazes, reivindicações e palavras de ordem, levam a condutas discursivas diversas que tornam a possibilidade de dar tratamento único ao problema muito difícil. Contudo, a análise do problema no plano jurídico não pode mais utilizar a dificuldade de formatar limites como mote para não apreciar como tese capaz de orientar decisões do Poder Judiciário em suas diversas instâncias. É preciso estabelecer o recorte, em que circunstâncias determinado discurso está, ou não, ao abrigo do princípio da liberdade de expressão ou se pode ser objeto de limitação jurídica.
Em período contemporâneo temos assistido no Brasil, com ênfase ao período pós-eleitoral de 2018, o uso de mídias sociais para espalhar ódio contra oponentes, contra instituições, personalidades públicas, propiciando a desqualificação do estado democrático de direito. Pensamentos que antes escondiam-se nas sombras passaram a ganhar o palco e a amealhar seguidores. E aqueles que antes não ousavam proclamar seu ódio cara a cara, sentiram-se fortalecidos ao descobrirem-se coletivo. Finalmente era possível falar tudo, gritar tudo. O que passou a ser confundido com autenticidade e com liberdade. Tudo operado em nome da Pátria, da Família e de Deus, evidentemente.
O ódio, em tempo de pós-verdade, deixou de ser algo a ser reprimido e trabalhado para ser ostentado. Expor os desejos mais primitivos em relação ao outro, mesmo que seja retirar-lhe direitos individuais ou mesmo a vida, anda lado a lado com as declarações de não saber, de não querer saber e de achar que não precisa saber. Porque a verdade não se pauta em fatos, dados, pesquisa, nada disso, apenas no que se afirma. Não é que não há mais pudor na ignorância, na estupidez e na defesa da prática de violência. É que há orgulho.
Cabe, nesse ponto, ao Supremo Tribunal Federal estabelecer os parâmetros entre discurso de ódio e liberdade de expressão, com vistas a sedimentar uma jurisprudência que esteja de acordo com os pilares do estado democrático de direito e da democracia. Liberdade de opinião e de manifestação que sirva a mobilizar hordas para a destruição da democracia não pode se qualificar dentro da liberdade de expressão, justamente uma conquista democrática.
Foi nesse sentido que a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) apresentou uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) requerendo que a Corte suprema, que possui a missão precípua de interpretar e fazer aplicar a Constituição Federal, estabeleça os parâmetros e a pertinência de critérios jurídicos que sirvam como base para a correta criminalização do discurso de ódio, como a harmonização das leis pátrias com os inúmeros tratados internacionais de que o Brasil é signatário, sem descuidar da legitimidade do direito à liberdade de expressão.
O Supremo Tribunal Federal precisa agir como a Corte capaz de analisar o problema para além dos umbigos de seus juízes, afetados em sua honra, ameaçados em sua integridade física e moral, atuando para ofertar uma resposta corporativa, atingidos pela onda que supõe que o direito ao ódio e à eliminação do outro são soberanos.
A resposta de quais os limites da liberdade para a prática de ódio é um desafio. Um desafio que não pode mais ser evitado, de cuja resposta depende a abertura da travessia para o reencontro com a estabilidade democrática no Estado de Direito. Assim como a secular tradição filosófica do ocidente dada pela vitória de Édipo sobre a Esfinge, é possível criar uma trajetória interpretativa, baseada em valores e princípios. A escolha é decifrar ou ser devorado.
Edição: Rodrigo Durão Coelho