Polícia Militar

Sem ordem judicial, PMs ameaçam e dão prazo de saída a moradores de ocupação em SP

Com medo de morrer, uma moradora da Ocupação Caveirão escreveu uma carta à mãe para que cuidasse de seus filhos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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"Eles já vêm fazendo essas investidas, mas segunda-feira eles deixaram um prazo", explica a assistente social Cintia Fidelis - Arquivo pessoal

Quando seu filho do meio, Benjamin, tinha apenas três meses vida, Lisa Neves foi jogada do primeiro andar do prédio em que morava pelo ex-marido. Desde então, há cinco anos, a auxiliar de enfermagem, que está desempregada, migra entre casas de parentes e ocupações espalhadas por São Paulo em busca de um abrigo para si e seus três filhos, todos com menos de 10 anos de idade. Há dois meses que ela vive na Ocupação Caveirão, um prédio localizado no centro de São Paulo (SP). 

Mesmo sem ordem judicial, o local é alvo investidas truculentas da Polícia Militar do Estado de São Paulo de despejo contra as 45 famílias que ali vivem, com cerca de 15 crianças. Moradores denunciam que nessas ações, que se tornaram frequentes nos últimos sete meses, os agentes não usam identificação.

As ações mais violentas, relata Lisa Neves, começaram no último domingo (21), quando um agente de segurança apontou a arma contra seu peito, enquanto ela carregava a filha de três anos no colo.

"Eles adentraram o prédio, quando arrombaram a porta, e vieram com a arma em punho e já veio lançando terror, botando medo. E a gente não podia falar nada.”

Segundo os relatos, os moradores, em sua maioria, também tiveram os aparelhos celulares danificados, dificultando o registro das ações policiais. “A gente é obrigado ao máximo tentar esconder o celular ou então eles pegavam da mão e quebravam. Eles fizeram isso com o celular do menino daqui que é deficiente, revistaram ele, tiraram a bolsinha que ele coloca a garrafinha de água com as coisas que ele toma, jogaram ele no chão, a cadeira de um lado, ele caiu do outro.”

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As famílias também relatam o uso de armas de choque, bomba de efeito moral, spray de pimenta e gás lacrimogêneo, além das ameaças, violências físicas e destruição de bens. 

“Então eles realmente meteram o terror. Aí eu já vi que a minha vida estava em risco. Eu escrevi uma carta para a minha mãe para ela cuidar dos meus filhos se eu não voltasse com vida, porque é o meu peito no cano da arma. Não tenho mais nada me defendendo aqui, é o meu peito. Se eu cair por terra, três órfãos ficarão aqui no mundo. São meus filhos. É nesse pé que está a minha vida.” 

A gente é obrigado ao máximo tentar esconder o celular ou então eles pegavam da mão e quebravam.

Lisa Neves compara a sua vida com uma guerra ao ver os filhos passarem por isso, tão pequenos. Ela sabe que não tem como colocá-los em uma bolha. Ainda assim, em paralelo ao barulho da truculência policial estourando em seus ouvidos, a auxiliar de enfermagem tenta “explicar a vida” aos três, convencendo-os de que pode ser diferente. Os pontos de mudança, no qual deposita toda a sua fé, são a aquisição de uma moradia e um emprego para voltar “à classe social de trabalhadora, porque eu estou na classe de degradação do ser humano”. 

Sem decisão judicial

Do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, que acompanha processos e conflitos fundiários, a assistente social Cintia Fidelis e a advogada Fabiana Rodrigues receberam os pedidos de socorro de Lisa Neves no momento da ação policial.

Quando a denúncia chegou, elas já sabiam que não havia nenhuma decisão judicial para a desocupação do prédio. “Isso nos causou estranheza. Não se trata de uma ação oficial, se trata de uma ação paralela por parte da polícia. (...) A gente percebe que é uma ação de uma polícia miliciana mesmo”, afirma Fidelis.

“Na segunda-feira, eles deixaram um recado dizendo que os moradores tinham até terça-feira, às 14h, para desocupar o prédio. Eles já vêm fazendo essas investidas, mas segunda-feira eles deixaram um prazo.” No dia seguinte, no início da noite, a ação foi mais truculenta ainda. Além das violências já praticadas, os policiais rasgaram um colchão deixando o formato de uma cruz e deixaram escrito em um caderno “O prazo é hoje”. 

A ocupação existe, pelo menos, desde 2018. Em maio daquele ano, quando houve o desabamento do prédio no Largo do Paissandú, a Prefeitura realizou vistorias nos prédios da região central do município e constatou que o edifício da Ocupação Caveirão não tinha as condições necessárias para abrigar moradores. O resultado foi a interdição e remoção das famílias. 

Pouco antes disso, um homem que se apresenta como proprietário do imóvel, relacionado a uma dívida de R$ 1,5 em Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), entrou com um pedido de reintegração de posse e conseguiu a liminar em agosto de 2018. A remoção, entretanto, já havia sido realizada quatro meses antes pela Prefeitura.

Ainda assim, no fim de 2019, as famílias voltaram a ocupar o prédio, e o proprietário a reclamar o imóvel. Em vez de manter a liminar até então obtida pelo proprietário, a Justiça solicitou a manifestação das partes para poder deferir alguma decisão. A advogada Fabiana Rodrigues explica que todas as partes já se manifestaram e que falta agora, portanto, a decisão judicial. 

“Não tem uma decisão final no processo ainda, tem essa liminar de 2018, só que o juiz do processo não retomou a liminar, não reativou a liminar para cumprir de imediato”, afirma Rodrigues.

Polícia

Quanto à ação dos policiais, o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos notificou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), a Ouvidoria da Polícia Militar e a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP). Segundo Dimitri Sales, presidente do Condepe, a SSP será solicita a apurar o caso, por meio da Corregedoria da PM de SP. Para ele, trata-se de uma situação “muito grave” uma vez que há indícios de agentes policiais atuando a partir de interesses privados, já que não há nenhuma ordem judicial.

O Brasil de Fato solicitou um posicionamento sobre os fatos para a SSP. Em nota, a secretaria afirmou que "a Polícia Militar esclarece que não há planejamento ou execução de reintegração de posse nem registro de ocorrências, até o momento, no local. O Comando do batalhão da área apura as denúncias, caso sejam comprovadas, medidas cabíveis serão adotadas".

Edição: Rodrigo Chagas