A necessidade repentina do trabalho remoto no mundo levantou a questão sobre o futuro do trabalho e, em alguns países, a corrida por sua regularização. Em abril, o Chile promulgou uma lei do trabalho a distância e agora a Argentina traça o mesmo caminho. Nesta última quarta-feira (24), a Comissão de Legislação do Trabalho da Câmara dos Deputados, presidida pela primeira vez por uma mulher, a deputada Vanesa Siley (Frente de Todos), enviou o projeto ao Senado após chegar a um consenso sobre o assunto.
Se, desde 2007, um único projeto de lei sobre o tema foi fadado ao esquecimento, em pouco mais de três meses desde o início da pandemia da covid-19, 21 projetos foram apresentados para estabelecer uma lei que regulamente o trabalho remoto como uma modalidade. A quarentena enfatizou problemas como a dificuldade de separar vida privada e trabalho – o que resulta em um prolongamento das jornadas –, gastos extras e demandas específicas aos trabalhadores, como a necessidade de conexão com a internet.
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Se, por um lado, o isolamento social tornou a regulamentação urgente, por outro, põe em xeque os prazos necessários para transformações profundas na cultura e nas relações de trabalho, enquanto os sindicatos perdem força, naturalmente, pela impossibilidade de realizar reuniões e mobilizações. Enquanto isso, o legislativo argentino segue a regra definida pelo filósofo Jacques Rancière como sintoma trazido pela pandemia: "os governantes reduziram o tempo da política à urgência".
A questão central do debate continua: regular o trabalho a distância assegura os direitos trabalhistas ou amplia a precarização laboral?
Amplo acordo
A resolução geral sobre o projeto de lei na Câmara dos Deputados consistiu em garantir os mesmos direitos do trabalho presencial à modalidade remota, contemplando as especificidades que abarcam o trabalho a distância e permitindo adaptações às particularidades de cada atividade.
O embate entre os interesses de trabalhadores e do setor empresarial ganhou espaço para considerações nas reuniões informativas da comissão tripartite, em videoconferência. Nos cinco encontros realizados até o momento, os projetos de lei, apresentados por legendas tanto do oficialismo quanto opositoras, foram discutidos por legisladores, representantes de centrais sindicais e do setor empresarial.
Um dos pontos de maior acordo entre os discutidos o direito a desconectar-se. O termo "autoexploração" surgiu na comissão, citado pelo ex-deputado nacional e assessor da YPF Héctor Recalde, ao advertir sobre um dos efeitos desta modalidade de trabalho. O projeto final determinou o "direito a não ser contatado e a desconectar-se dos dispositivos digitais", de forma que "o empregador não poderá exigir à pessoa que trabalha a realização de tarefas, nem emitir comunicações fora da jornada de trabalho".
A Argentina tem a tradição de respeitar os princípios básicos do trabalho.
Outros pontos de ampla concordância e contemplados no PL enviado ao Senado foram a carga horária coerente para trabalhadores que tiverem de cumprir cuidados especiais, no caso de responsáveis por crianças ou outros; garantia de condições sanitárias e de segurança; fornecimento dos equipamento necessários ao trabalho; e a necessidade de consentimento de ambas partes para realização da modalidade remota, bem como para a reversão à modalidade presencial.
Apesar dos problemas no campo do trabalho, que incluem altos índices de desemprego, subocupação e emprego não registrado, o país conta com um histórico de movimento sindical forte e de leis trabalhistas avançadas. "Salvo pela interrupção do Estado democrático, a Argentina tem a tradição de respeitar os princípios básicos do trabalho. Acredito que esse marco legal, a claridade nas definições e o direito coletivo são uma rede de proteção que garantem os níveis que queremos para proteger os trabalhadores", ressaltou o ministro do Trabalho, Claudio Moroni, em uma das reuniões da comissão que debateu o tema na Câmara.
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Por outro lado, correntes do setor sindicalista problematizam a criação de uma lei permanente a partir de uma situação excepcional, como defende Julio Fuentes, presidente da Confederação Latino-Americana e do Caribe de Trabalhadores Estatais (Clate): "Para isso deveria haver uma resolução transitória. Uma coisa é a pandemia; depois, deveríamos voltar aos escritórios, aos postos de trabalho. Não sei quem apressa a sanção de uma norma que ninguém está pedindo", afirma.
"Aos ouvidos de um distraído, tudo parece voluntário, nada é obrigatório. Mas a relação de trabalho não é uma relação de pares, é de subordinação." Neste sentido, Fuentes atenta para interesses do setor empresarial, que teria as maiores vantagens com a regularização do trabalho remoto, com a economia de gastos de um espaço físico e uma margem mais ampla para explorar os trabalhadores.
A relação de trabalho não é uma relação de pares, é de subordinação.
Mulheres e divisão sexual do trabalho
Levar o trabalho para dentro de casa levanta a problemática da desigualdade na distribuição sexual do trabalho doméstico, que inclui cuidado de terceiros, como filhos, e das tarefas próprias do lar.
A pesquisa "Mulheres e trabalho remoto", realizada em conjunto pela Associação de Trabalhadores do Estado (ATE), Fundação Foro Sur e ONU Mulheres, revela que 84% das mulheres são favoráveis à modalidade, mas que pouco menos de 50% dessa parcela só o faria se pudesse revezar o trabalho a distância com o trabalho presencial.
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A economista Sofia Scassera, uma das autoras da pesquisa, defende a aprovação do projeto de lei como uma conquista para as mulheres. "Legislar o trabalho remoto não é meter as mulheres dentro de casa, outra vez. É regulamentar e dar direitos considerando uma realidade que a população pede e existe", diz, destacando que, por mais que não seja o cenário ideal, ainda é uma realidade: mulheres ainda cumprem mais tarefas domésticas.
"O trabalho remoto impõe um novo desafio às mulheres, mas não vejo como algo que atenta contra o feminismo", assinala.
Neste sentido, a regulamentação seria uma garantia contra a precarização e a exploração das mulheres, combinando o que parece ser uma tendência de preferência sobre a forma de trabalhar, sem que isso signifique que as mulheres queiram "ficar em casa".
O futuro do trabalho
Dados do Centro de Implementación de Políticas Públicas para la Equidad y el Crecimiento (CIPPEC) apontam que 40% das atividades na Argentina não poderiam mudar para o trabalho remoto, por impossibilidades técnicas e concretas. Atuam nessas atividades, uma maioria de trabalhadores da população vulnerabilizada no país, e que veem sua economia impactada pelo isolamento social.
Os principais trabalhos não virtualizáveis são os setores da construção (15%), serviços domésticos (14%), indústria manufatureira (13%) e transporte (10%), enquanto as atividades que mais estariam aptas para o trabalho remoto são os setores que, justamente, cresceram com a mudança tecnológica: ensino (71%), atividades financeiras e seguros (61%), científicas (60%), e informação e comunicação (58%).
Muitas empresas que adotaram essa modalidade, sobretudo nos serviços, vão a continuar.
Com a aprovação da lei, a expectativa é de que a realidade pós-pandemia no mundo do trabalho abarque muito mais a modalidade à distância, como prevê o deputado nacional e secretário geral da Central de Trabalhadores da Argentina (CTA) Hugo Yaski, autor de um dos projetos de lei discutidos na comissão.
"Tínhamos, na Argentina, antes do isolamento social, aproximadamente entre 12 a 14% de empregadores fazendo trabalho remoto. Depois da pandemia, sabemos que esse número vai crescer, porque muitas empresas que adotaram essa modalidade, sobretudo nos serviços, vão a continuar", afirma.
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Moradia
Se, por um lado, reconhecer uma nova modalidade pode proteger o trabalhador por lei contra uma possível diluição dos direitos trabalhistas, além de assumir mudanças que já vinham ocorrendo no mundo do trabalho com as novas tecnologias, por outro, há expectativas de que se firme um cenário desvantajoso para as camadas mais populares.
Corporações empresariais sabem que terão um cenário propício para continuar baixando o custo trabalhista.
Ao levar o trabalho para dentro de casa, a questão da moradia também aparece como um problema, como aponta Fuentes: "Na América Latina e no Caribe, vivemos em superfícies por baixo de 50% do que seria necessário para habitar bem; em pequenos apartamentos, em quartos, com pouca comodidade. Querem transformar esses lares, produtos de injustiças e de uma péssima distribuição da riqueza no nosso continente, em lugar de trabalho", afirma.
Yaski acrescenta que o embate com as corporações empresariais continuará, e que, inevitavelmente, um cenário onde há expectativa de crescimento do trabalho remoto, o impacto será grande entre a população mais precarizada. "As corporações empresariais sabem que terão um cenário propício para continuar baixando o custo trabalhista, estendendo as jornadas de trabalho, gerando empregos de baixa qualidade", analisa. "Em alguns países, vai haver turbulência social e mobilização, e não descarto que isso aconteça também na Argentina."
Edição: Rodrigo Chagas