Não é possível pensar um mundo melhor sem interromper essa máquina, nem que seja por um dia.
Esse mês foi noticiada a situação de precariedade dos trabalhadores de aplicativos (entregadores de serviços de delivery) nesse período de pandemia. Além de estarem mais expostos aos vírus e terem uma remuneração miserável repassada pelos aplicativos, como por exemplo, o “uber eats”, um entregador declarou no jornal: “entrego comida com fome”. Algo que torna mais trágico o enredo de superexploração.
Essa situação limite levou os entregadores a puxarem uma paralisação para o dia primeiro de julho de 2020. Um grito de basta ecoa diante dos efeitos da política neoliberal atual.
Essa situação me remeteu a um passado recente, de 10 anos atrás, e a uma história da continua exploração da nossa gente, como já descreveu Galeano nas Veias abertas da América Latina.
Estava em Potosí, Bolívia, em janeiro de 2010 e minha primeira percepção na cidade foi a falta de um elemento básico: o oxigênio. Uma boa caminhada pela segunda cidade mais alta do mundo, só é possível mastigando um bom bocado de folhas de coca, utilizadas pelos cidadãos de lá.
A história chama a atenção ao visitar a Casa de la Moneda e verificar que a cidade foi a mais rica do mundo no século 17 devido à extração da prata. Ela era equiparada à capital da metrópole, Madri. Não por acaso, o time de futebol da cidade chama-se Real Potosí. Dessa pompa, o que restou? Junto ao status de “capital” ela também pode receber o título de cidade mais saqueada pelos colonizadores europeus.
O pior é saber que as vítimas de ontem também são as de hoje. Através de um discurso moderno e uma roupagem transnacional os exploradores são os mesmos.
Naquele contexto que conheci o guia mirim Iber, ao visitar as minas do monte conhecido como Cerro Rico. As galerias levam os visitantes a se deparar com condições insalubres de trabalho, talvez próximas ao que acontecia no século 17. Após vivenciar aquilo, descobri que de cada 10 trabalhadores/as mineiros, sete morriam em decorrência do próprio trabalho na mina. Literalmente, uma máquina de moer gente em nome do capital. Isso em 2010.
As igrejas, a espiritualidade no Deus “Tio”, o fumo, a aguardente, a folha de coca, amenizavam a curta vida do mineiro.
Enquanto guia, o menino Iber não precisava se submeter àquele trabalho naquele momento, mas, em breve, a sua hora chegaria. Como chegou a do seu pai, que com pouco mais de trinta anos já havia falecido em decorrência da silicose, doença pulmonar que atinge os que aspiram o ar da mina com frequência.
Iber, um órfão, potosino, de família pobre não terá escolhas caso faltem oportunidades e o destino continue apontando esse caminho à sua família. Em pleno século 21, ele tinha total consciência de que, se a lógica do capital prevalecesse, a sua expectativa de vida dentro de uma mina seria a de mais aproximadamente 15 anos e, em breve, ele poderia ser mais um número a compor as trágicas estatísticas e o destino fúnebre dos mineiros de Potosí.
O faminto entregador do Uber e o potosino Iber são algumas das faces dessa máquina de moer gente e sonhos chamada capitalismo. Não é possível pensar um mundo melhor sem interromper essa máquina, nem que seja um dia. Hoje é um desses dias!
Edição: Rodrigo Durão Coelho