Vistos como membros de uma categoria pouco organizada e sem liderança para reivindicar direitos, os entregadores e entregadoras de aplicativos surpreenderam o país na última quarta-feira (1º), ao realizarem uma greve por condições mínimas de trabalho.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Marco Aurélio Santana, coordenador do Núcleo de Estudos Trabalho e Sociedade (NETS-UFRJ) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), disse que as empresas foram impactadas e que pode haver desdobramentos ainda maiores nas próximas paralisações.
"As empresas, apesar de minimizarem, sentiram os reflexos da mobilização. Aqueles que apostaram no fracasso dessa mobilização, perderam. O saldo político e organizativo é extremamente favorável. Agora, é ver como as empresas respondem às demandas que lhes foram endereçadas", afirma Santana.
::“Muito trabalho para receber pouco”, destaca entregador de aplicativo sobre rotina::
Ao analisar o cenário nacional como consequência da reforma trabalhista aprovada, em 2017, no governo de Michel Temer (MDB) e nos desmontes pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido) de leis históricas que resguardavam direitos de trabalhadores, o professor alerta que a precarização é ainda mais ampla.
"Essa não é uma categoria nova no mundo do trabalho brasileiro, mas que sofreu transformações quantitativas e qualitativas. Junto com outros setores, eles estão na ponta do processo da chamada uberização do trabalho", sinaliza o pesquisador, acrescentando que um novo movimento pode estar nascendo a partir das greves dos entregadores de aplicativos.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Como você avalia a greve geral dos entregadores por aplicativos na última quarta-feira (1º)?
Marco Aurélio Santana: O que se viu na greve pode ser tranquilamente considerado como um sucesso desse movimento. Os trabalhadores e as trabalhadoras constituíram um sujeito coletivo, explicitando suas demandas, se organizando e se mobilizando por elas na cena pública. Concretamente, o movimento alcançou, com graus variados, paralisações e manifestações, em muitas cidades brasileiras, atingindo capitais importantes. Ele teve claros impactos no serviço de entregas e, digno de nota, pois pode indicar o apoio dos consumidores, se identificou uma redução de pedidos ao longo desse dia. As empresas, apesar de minimizarem, sentiram os reflexos da mobilização.
Aqueles que apostaram no fracasso dessa mobilização, perderam.
O saldo político e organizativo é extremamente favorável, agora é ver como as empresas respondem às demandas que lhes foram endereçadas. De todo modo, já está sendo indicado um novo dia de luta pela categoria para a continuidade do movimento. Muitos trabalhadores que não participaram efetivamente mostraram posicionamento favorável frente ao movimento. A tendência, dependendo do posicionamento das empresas, será o aumento de engajamento nessa luta.
A que se pode atribuir o fato de que a categoria seja uma das mais atingidas na pandemia da covid-19?
Em termos gerais a pandemia serviu como evento desvelador e agravador de um cenário sombrio, já instalado, no mundo do trabalho brasileiro pelo neoliberalismo. Esse cenário tem a ver com o desmonte intencional das formas históricas de proteção social ao trabalho, em um processo vertiginoso desde o golpe de 2016 e o governo Temer (MDB) - tendo sido, inclusive, um de seus motivos centrais -, e coroado agora pelas políticas do governo Bolsonaro (sem partido).
De lá até aqui o capital, em um processo que acompanhava uma dinâmica global, conseguiu implantar o seu conjunto de políticas regressivas na área do trabalho, as quais abarcaram uma alteração destruidora do sistema de regulação protetiva em termos trabalhistas e previdenciários. Nos dois casos foram mudanças bastante profundas que deixaram o trabalho descoberto no presente (quando trabalhadores e trabalhadoras estão em atividade, mas desprotegidos de direitos sociais) e no futuro (quando da época do que seria a sua aposentadoria).
Que influências a "uberização" do trabalho e a reforma trabalhista aprovada em 2017 exercem sobre o cenário atual?
Alardeadas como produtoras de emprego, o que, por óbvio não eram, as mudanças da chamada reforma trabalhista e da lei de terceirizações, incensadas pelo discurso do empreendedorismo, garantiam ainda mais espaço em vias largas para o avanço da precarização e da informalidade. Junte-se a isso números astronômicos de desemprego para termos uma ideia do contexto explosivo em que já nos encontrávamos.
Quando a pandemia bate à porta, o quadro para a classe trabalhadora brasileira é ainda mais que dramático. Aqueles setores que ainda se mantiveram nos arranjos minimamente protegidos da formalidade, quando não simplesmente demitidos, foram obrigados a suspensões de contrato, redução de jornadas e de salários. Aqueles completa ou praticamente desprotegidos, a parcela mais vulnerável da classe trabalhadora, foram colocados frente à trágica escolha entre o vírus e a fome. Diante da irrisória ajuda emergencial do governo, estes trabalhadores precisam sair às ruas para ter seu ganha pão, e enfrentar o risco da contaminação e da morte. Como diz o Rap dos Informais, “agora dão duas opções para quem é pobre, morrer na rua de corona ou em casa de fome. Entre morrer em casa e morrer na rua, eu prefiro nenhuma das duas”.
Muitos desses trabalhadores e trabalhadoras saíram da invisibilidade social, seja pela presença física e circulação em cidades praticamente desertas, seja pela clara importância que assumiram em meio ao isolamento social. Os entregadores se destacam entre essas categorias.
Eles já vinham mudando as nossas paisagens urbanas, dada a sua quantidade, seja de moto ou de bicicleta, com suas mochilas coloridas com nomes de empresa de aplicativos. Agora, se expondo a grande risco, vêm garantindo que, por exemplo, amplos setores da classe média possam se manter em isolamento social. Essa não é uma categoria nova no mundo do trabalho brasileiro, mas que sofreu transformações quantitativas e qualitativas. Junto com outros setores eles estão na ponta do processo da chamada uberização do trabalho. É a classe trabalhadora plataformizada que opera em meio ao sistema mobilizado por aplicativos, articulando a sofisticada tecnologia digital com formas regressivas e precárias de trabalho.
Essa categoria foi excluída do auxílio emergencial de R$ 600 aprovado pelo Congresso Nacional em função da pandemia. São os trabalhadores mais precarizados no contexto que vivemos?
Os entregadores e entregadoras, se olharmos dados de 2019, quando representavam cerca de 5,5 milhões de trabalhadores, e de pesquisas de perfil mais recentes, são em grande maioria homens, jovens e negros, dos quais cerca de 5% é de mulheres, representando algo em torno de um quarto dos trabalhadores por conta própria no país. Além de estarem descobertos de direitos sociais, são submetidos a condições diárias de trabalho totalmente precárias, com longas jornadas de trabalho, extrema pressão por ritmos, altos índices de acidente e baixa remuneração.
Junte-se a isso o fato que são mantidos em uma relação predatória pelas empresas dos aplicativos. Elas, apesar de empregarem um contingente muito maior do que a maioria dos setores econômicos, não se consideram as empregadoras desses trabalhadores, mas, os chamando eufemisticamente de “parceiros”, apenas alguém que promove o encontro entre, por exemplo, restaurantes, entregadores e consumidores, tentam se distanciar de qualquer tipo de vínculo. Os trabalhadores estão sob sua própria conta e risco, inclusive fornecendo seus instrumentos de trabalho, como motos e bicicletas.
Essa categoria, apesar de supostamente viver circulando livremente, está submetida a formas fortes de subordinação pela via do controle eletrônico, que monitora e define seus acessos, ritmos e movimentos, influenciando seus possíveis ganhos.
E que pode aplicar variadas sanções, justificadas ou não, sempre que quiser, bastando, por exemplo, deixar o entregador bloqueado sem pegar pedidos.
Nesse momento, se usou a tradicional fórmula de máxima exploração da mão de obra com mínimo custo e grandes lucros, certo?
Como em outras áreas, os aplicativos aproveitaram a pandemia para aumentar seu lucro e o controle sobre trabalhadores. Dado o alto nível de desemprego e com vários setores com atividade paralisada, a categoria, como já vinha ocorrendo nos últimos anos, recebeu um afluxo grande de novos membros, o que aumentou o ganho dos aplicativos e reduziu os dos trabalhadores. A grande maioria viu sua remuneração cair durante a pandemia.
Assim, o quadro da categoria agravou-se ainda mais na pandemia. Isso produziu um caldo de conflito, demonstrado já por sucessivas paralisações, protestos etc., que desemboca nessa greve geral de 1º de julho, a #BrequeNosApps, que, como dizem muitas das falas, “pede o básico do básico”. Estão aí colocadas demandas tais como melhor remuneração, alimentação, EPIs [equipamento de proteção individual] como álcool gel e máscaras, locais para ir ao banheiro, seguro para as motos e acidentes, fim das punições injustificadas etc. Olhando as reivindicações e as falas dos entregadores, percebe-se que estamos diante de um movimento por reconhecimento e dignidade no trabalho.
Mesmo que recebendo apoio de diversas categorias, esse movimento está distante ainda de uma organização sindical mais estrita. Essa é uma categoria bastante capilarizada e que age através de seus grupos e associações, muito articulada através das redes sociais e de grupos no WhatsApp. Isso, por certo, garante potencial e força a mobilizações. De todo modo, o movimento em si já era um sucesso pela sua própria organização, por trazer a público suas demandas e até por um processo importante de politização de setores da categoria como os “entregadores antifascistas”.
Podemos estar assistindo ao nascimento de um movimento de trabalhadores que estão completamente desamparados por leis trabalhistas?
Uma questão, que será interessante avaliar em termos de passos futuros, se relaciona com as formas organizativas que a categoria lança mão. O movimento pode seguir com as mesmas características apresentadas até aqui. Ou pode se aproximar buscando interlocução com formas tradicionais de organização, produzindo uma tensão criativa entre elas. Lembrando que já existem diversas associações e sindicatos representando parte do contingente do setor. Há perdas e ganhos nessas escolhas. Em termos de mobilização, teremos de ver como ele buscará incorporar cada vez mais trabalhadores nessas lutas, bem como que outros setores e categorias, bem como consumidores, podem somar nessa luta contra a precarização do trabalho e da vida.
Há, entre outras, algumas frentes importantes possíveis que podem vir a somar com a pauta já exposta pela categoria, dependendo das escolhas dos caminhos à frente. Um deles, fundamental para essa categoria e outras às voltas com as plataformas digitais, ainda que haja uma diversidade de opiniões sobre isso entre os trabalhadores, é que a regulação se estabeleça, obrigando, como tem acontecido em outros países, que as empresas reconheçam os vínculos de emprego que mantêm com seus trabalhadores e se responsabilizem por eles. Outra possibilidade é o desenvolvimento de mecanismos digitais coletivos, próprios dos trabalhadores para a gestão de seu trabalho. Mais difícil, mas também importante e precisa ser feito como ponto de disputa, é a discussão dos próprios algoritmos utilizados pelas empresas e seu funcionamento. Eles não são neutros, e reside ali o centro do processamento de subordinação e exploração.
Independente de seu resultado, e ele foi bastante positivo, há tendências importantes aflorando desse movimento, nem todas necessariamente novas nos repertórios de ação, e que podem auxiliar na construção de caminhos para a luta da classe trabalhadora no país.
A articulação entre formas de organização horizontais e outras mais verticais, entre ações espontâneas e outras mais vertebradas, entre ação no mundo real e ação virtual, o intenso uso de aplicativos de mensagem tanto no sentido organizativo quanto no de agitação e propaganda etc. têm fornecido características interessantes a esse movimento.
Paulo Lima, o Galo, dos “entregadores antifascistas”, em uma de suas falas públicas indicou, corretamente, que o processo de uberização, e tudo o que ele significa em termos de precarização da vida e do trabalho, não se restringe ou restringirá à categoria dos entregadores, ele é o projeto do capital para a classe trabalhadora como um todo. Portanto, será interessante acompanhar o desdobramento desse movimento e suas repercussões em outros movimentos da classe trabalhadora. Como se diz, movimentos movimentam.
Há trabalhadores que não puderam aderir à greve por necessidade da diária, há a falta de proteção para direito à greve e há também a falta de coesão e de um sindicato. Existe saída para essa categoria?
Há um claro desafio histórico aí presente. Se comparados a um movimento da classe trabalhadora do período anterior, se poderia achar impossível que trabalhadores submetidos a tal informalidade e precarização da vida e do trabalho pudessem conseguir sequer tempo de pensar em se organizar e em reivindicações. E a aceleração dos fluxos da vida pelo neoliberalismo já vinha mesmo afetando bastante as possibilidades de encontro, práticas coletivas, tendo impactos políticos claros. Mas, se deve pensar que, em outros momentos históricos, a classe trabalhadora também desprotegida e atuando em situação bastante adversa, conseguiu desenvolver formas de organização e luta. Além do que, a juventude trabalhadora precária tem estado presente atualmente em movimentos importantes pelo mundo todo, utilizando variadas formatos para a canalização da conflitividade social.
Mas, como já sabemos, as empresas não dormiram no ponto. Como é comum, entraram em campo, direta ou indiretamente, para colocar pressão e impedir ou, ao menos, esvaziar o movimento. Algumas vieram a público divulgando o que seriam suas ações frente às condições de trabalho, no que foram replicadas pelo movimento pelas redes sociais. Há notícias de pressões por parte de Operador Logístico (OL), que fazem terceirização desses trabalhadores para as empresas, tentando impedir o movimento. Há a preocupação com possíveis perseguições e bloqueios, principalmente daqueles que se destacaram na organização da mobilização.
Está claro que o avanço do movimento trará não apenas a necessária melhoria das condições de trabalho, mas pode custar às empresas um preço alto, principalmente em termos políticos e organizativos, que elas buscam frequentemente evitar.
Em todo movimento desse tipo existem riscos. Mas a categoria passou nesse grande teste em sua trajetória de luta, pois as condições às quais é submetida são anteriores à pandemia, se agravam com ela e, com certeza, continuarão quando vencida essa etapa, porque faz parte da lógica do sistema. O movimento vai depender também, em parte, da solidariedade social ativa dos usuários dos aplicativos. É preciso perceber que a garantia do isolamento social não pode se dar, para determinados grupos sociais, sustentado pelo risco de vida e pela precarização do trabalho de outros.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Rodrigo Chagas e Mariana Pitasse