Povos de terreiro historicamente foram excluídos de políticas públicas e invisibilizados
Por Hugo Silva Caetano*
Inicialmente concebido como estrangeiro, o novo coronavírus chega ao Brasil como um vírus que só contaminava viajantes em condições econômicas capazes de sobrevoar a atmosfera europeia e regiões continentais adjacentes.
Contraditoriamente, o vírus, antes estrangeiro, sobrevoou a América Latina e vem contaminando uma diversidade de países em significativas condições de pobreza, entre os quais o Brasil vem liderando as estatísticas de mortes e superlotação de hospitais, ocupados não menos pela população preta e pobre das periferias das capitais do país.
Parte dessa população são membros de terreiros que, obrigatoriamente, tiveram que reorientar não somente as relações com a espiritualidade e com a comunidade, mas também modificar práticas comuns ao complexo religioso de matriz africana, haja vista a interrupção de ritos fúnebres, de cerimônias festivas e outros procedimentos internos não realizados nesse período.
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Yalorixás e babalorixás que, em sua maioria, sobrevivem de donativos angariados pela própria religião, proporcionando o bem estar de pessoas através de consultas e rituais, estão impossibilitados de continuar realizando tarefas como ir à feira para comprar objetos, folhas e outros utensílios comumente utilizados nas práticas religiosas lá encontrados.
O que há de contraditório entre ricos viajantes e os pretos de candomblé é justamente a forma racista costumeira do tratamento dispensado aos não brancos e, partindo dessa observação, o modo como políticas públicas são organizadas para atender classes minoritárias.
Segundo matéria do jornal O Globo, de 21 de junho de 2020, a maioria dos estados brasileiros não tem informações sobre raça/etnia das vítimas de covid 19.
Tal situação denuncia não apenas a despreocupação com dados que atestam as condições de pobreza e insalubridade da população negra no tocante à saúde pública como coloca em relevo a histórica exclusão dessa população em diversos âmbitos do direito.
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Povos de terreiro historicamente foram excluídos de políticas públicas e invisibilizados não somente do cenário religioso nacional.
A motivação da invasão e derrubada de templos acontecida recentemente em terreiros de umbanda e candomblé não está desvinculada de uma visão massificada do negro como uma classe inferior e desprovida de direito. Essa é uma visão que reproduz os primórdios da escravização de africanos em tempos de colonização.
Motivada pela marcada intolerância religiosa hegemonicamente evangélica, essas ações vêm dando sinais da vulnerabilidade porque passa a grande maioria da população de periferia no Brasil.
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Em Salvador (BA), um pastor evangélico vem divulgando nas redes sociais, em tom raivoso e impositivo, a retirada do povo de santo da gestão do projeto do Parque em Rede Pedra de Xangô, localizado no bairro de Cajazeiras, com a justificativa da laicidade religiosa, fato que denuncia mais uma vez a tentativa de manutenção da hegemonia cristã e neopetencostal na condução dos projetos políticos apoiados pelo atual governo federal e pela direita conservadora escravagista.
O modus operandi de pastores e da bancada evangélica, em parceria com setores conservadores, não tem permitido o avanço de políticas públicas que permitam uma agenda mais plural e progressista, que garanta a participação dos diversos grupos que compõem a sociedade brasileira, incluindo os povos de terreiro.
Nesse sentido, não se pode tratar as questões raciais desfocadas da questão do direito humano. O que acontece com a maioria da população negra, incluindo os povos de terreiro, não está desfocado de uma concepção capitalista e neoliberal, que prioriza o lucro e a riqueza de poucos em detrimento do sacrifício de uma maioria.
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As práticas de discriminação perpetradas contra a população negra fazem parte de um racismo estrutural, desenvolvido historicamente para viabilizar formas de inferiorização das camadas populares não brancas, as quais dificultam a inserção desses sujeitos nos diversos campos do direito, seja na educação, na economia, na cultura e na saúde.
Quando se trata de saúde pública, mesmo que se considere a importância dos protocolos orientados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde no Brasil, nenhum diálogo com as diversas culturas tradicionais, como as religiões de matriz africana, deve ser realizado sem a escuta desses grupos, mesmo que seja para dizer da importância dos cuidados com a saúde coletiva.
Apesar da falta de diálogo com esses povos, diversos terreiros têm elaborado estratégias para o enfrentamento da covid 19, como a doação de cestas básicas, bem como dialogado, autonomamente, com os membros da comunidade e outras pessoas que procuram auxílio nesse tempo de conflito emocional.
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Nesse aspecto, as comunidades tradicionais vêm encontrando formas de promover o direito, mesmo sem a existência de políticas públicas efetivamente específicas para esse setor. Essa ação torna-se uma alternativa de combater práticas comuns de racismo, de incluir a população de terreiro e de lutar contra os abusos cometidos pelo Estado conservador.
Situações desse tipo contribuem para que a sociedade esteja atenta às formas de mascaramento do racismo, assim como intensificam as estratégias de enfrentamento e de mobilização dos terreiros, do movimento social, da educação, através das universidades e da escola, e fazer valer a lei que garante a igualdade de direitos de todos os brasileiros perante à constituição.
*Hugo Silva Caetano é ogã de Ogunjá do Terreiro Ilê Axé Ogum Ominkayê e professor de Filosofia SMED/Salvador.
Edição: Leandro Melito