Vítima da covid

Memória: Tia Zilda, copeira do MST, a mulher que fazia pequenas revoluções

Trabalhadora dá agora nome a uma brigada que fornece alimentação saudável a desempregados e pessoas em situação de rua

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Zilda Ramos é um retrato da cultura e do modo de vida da população negra e periférica, a mais afetada pela covid-19 na capital paulista - Arquivo / MST

Na madrugada do dia 30 de abril morreu, em São Paulo, Zilda Camargo Ramos, 65, chamada carinhosamente pelos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de Tia Zilda. A morte por covid-19 chegou numa quinta-feira. 

De segunda a sexta, Zilda acordava às 4 horas, saía de seu apartamento no bairro Cidade Tiradentes, no extremo leste da cidade, pegava um ônibus e duas linhas de metrô para descer na estação Marechal Deodoro, no centro. Caminhava alguns metros até chegar ao prédio da Secretaria Nacional do MST, onde trabalhava como copeira.

Quando o tempo transcorrido no transporte durava menos que as habituais duas horas, ela aproveitava para visitar o sacolão ao lado da secretaria, onde era conhecida pelo bom humor. O seu nome, a sua memória e o seu corpo de mulher negra, evangélica e periférica agora somam-se na contagem ascendente das vítimas letais da pandemia do coronavírus nas periferias do Brasil.

Tia Zilda está entre os 63 milhões de trabalhadores pobres brasileiros que, por motivos socioeconômicos, estão mais vulneráveis ao contágio pelo vírus. Não por terem votado em A ou B, mas por morarem onde moram. Mais que um número, a história de Zilda é a história das periferias brasileiras.

Como homenagem, ela passou a dar nome à Brigada Estadual Solidária Zilda Camargo Ramos, formada por militantes do movimento de todo o estado de São Paulo. Desde o dia 20 de abril eles trabalham na Campanha Periferia Viva de São Paulo com o projeto Marmita Solidária, uma iniciativa do MST em várias regiões do país que consiste na doação de alimentos saudáveis para atender trabalhadores desempregados, migrantes e pessoas em situação de rua.


Projeto Marmita Solidária em Curitiba: distribuição para pessoas em situação de vulnerabilidade. / (Foto: Giorgia Prates/MST)

"Ela nunca tinha sido tratada com carinho nos empregos"

Caçula de cinco irmãos, Zilda nasceu no dia 21 de janeiro de 1955, em um parto domiciliar realizado na casa recém-comprada pela família na Vila Formosa, também na zona leste. Com a morte do pai, Pedro, em 1962, ela encontrou conforto entre as mulheres da família, em especial a irmã Irene que, aos 14 anos, já trabalhava em uma fábrica. As duas foram criadas juntas sob a tutela da mãe, Durvalina, mas Irene lembra da irmã também como uma filha.

— Ela foi sempre minha amiga, parecia minha filha mais velha. Eu estava sempre junto com ela. E ela não me largava de jeito nenhum, a minha irmãzinha. Se ela não podia vir aqui na minha casa, me ligava, e fazia jantar pra mim. Era sempre muito alegre. A gente se amava muito. Essa doença maligna pegou a minha irmã e a levou de mim.

Depois da morte do pai, a família mudou-se para São Mateus, onde Zilda estudou até a quarta série do ensino fundamental. Aos 13 anos, deixou os estudos para complementar a renda familiar. Passou a trabalhar de faxineira e babá. A carreira de empregada doméstica durou 42 anos, até que, em 2010, foi contratada para trabalhar na Secretaria Nacional do MST.

Ali ganhou a alcunha de “tia”, que levaria pelo resto da vida. Além de passar o café quentinho todas as manhãs e depois do almoço, era ela quem cuidava das plantas do jardim, servia frutas aos funcionários e encomendava bolos de aniversário para os colegas, que lembram com carinho da amiga.

“Zilda amava o trabalho”, relembra Ísis Campos, integrante da direção do MST. “Ela dizia que nunca tinha sido tratada com tanto carinho nos empregos anteriores. E ela retribuía com muito carinho também. Ela entendia a nossa luta e tinha muita consciência de classe. Conversávamos muito sobre a exploração do trabalho doméstico”.

Ísis lembra com carinho das palavras de Tia Zilda após um pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro em que atacava o movimento.

— Estávamos todos estressados. Naquela época eu estava amamentando a minha filha. Ela me chamou e me sugeriu parar de assistir a TV, para que eu não me estressasse ainda mais e corresse o risco de acabar o leite da bebê. Esse tipo de conselho é de mãe afetuosa, de mulher que ama.

Marido taxista morreu baleado em assalto

Não era o ambiente — limpo, organizado e vivo — que tornava a cozinha da secretaria o lugar mais aconchegante do prédio. A humanidade de Dona Zilda conquistava os colegas de trabalho, que sempre arrumavam motivos para dar um tempo das reuniões e tarefas na frente do computador, para irem até a cozinha trocar palavras amorosas com a copeira. Sua capacidade de tratar todas as pessoas com respeito e igualdade tornava o dia-a-dia do escritório mais humanizado.


Manifestação do MST em Alagoas / (Foto: Vinícius Braga)

No trabalho, ela assumia uma posição silenciosa. Introvertida, falava baixinho sobre pormenores rotineiros, deixando fluir, a partir das palavras simples, sobre os ritmos cotidianos, os temas mais profundos. Seu modo de agir fez da copa um lugar de confidências, de trocas sutis, de descargas emocionais e restauração de energias. Tudo isso envolto em uma atmosfera de confiança, como recorda Maura Silva, jornalista do MST, também oriunda da zona leste:

 — Sua grande característica foi ter optado pela generosidade. É muito fácil gostar de quem é bom, de quem trata a gente bem, mas às vezes a gente esquece de que isso é uma escolha. Ela escolheu ser boa, optou pela solidariedade, por tratar a todos sem distinção. O café que ela servia ao maior dirigente do movimento era o mesmo café que ela servia para qualquer outra pessoa. Essa opção de vida que ela fez foi o que a tornou essa pessoa tão especial, tão generosa.

Viúva há 21 anos, Zilda morava sozinha no seu apartamento popular na Cidade Tiradentes. O imóvel foi comprado depois do assassinato do marido, o taxista Irineu Ramos. Companheiros por 25 anos, os dois se casaram na igreja evangélica, quando Zilda tinha 19 anos. Na Semana Santa de 1999, Irineu foi baleado em um assalto e não resistiu aos ferimentos.

“Quando a brutalidade toma conta da gente, é difícil se manter são, mas a Dona Zilda era a prova de que é possível passar por tantas mazelas e ainda continuar doce”, diz Zildinete Silva, ex-colega de Zilda, que atua hoje no Instituto Cultivar. “Mesmo quando ela estava triste, não deixava de dar um carinho, de conversar. O que a gente via era sempre um grande cuidado”.

Bairro é o terceiro na lista de mortes por covid

Os objetos no apartamento de Zilda estão exatamente como ela deixou, antes de dar entrada no hospital onde faleceu. São objetos comuns, de uso cotidiano: roupas, sapatos, utensílios domésticos, alguns móveis. Quem vive na Cidade Tiradentes não costuma deixar bens materiais de alto valor econômico.

O bairro tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital paulista, ocupando a 87ª posição entre os 96 distritos da capital. Cidade Tiradentes é também o terceiro bairro da Zona Leste com mais mortes por covid-19 na capital: até o dia 19 de maio, foram contabilizados 102 óbitos.

O aumento do número de mortos pela pandemia na zona leste, região que lidera o número de casos de contaminação por Covid-19 em São Paulo, levou à falta de espaço no Complexo da Vila Formosa, um cemitério público voltado para classes C, D e E inaugurado em 1949, ocupando dois lotes do que fora a olaria onde o pai de Zilda trabalhava.

Em fevereiro de 2020, um mês antes de a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar o estado de pandemia, houve 880 enterros na maior necrópole da América Latina. De fevereiro a abril, o trabalho dos coveiros aumentou 187%. Por isso, o cemitério, que agora sepulta em média oitenta pessoas por dia, está exumando diariamente cerca de cinquenta ossadas para fazer caber o contingente das vítimas de covid-19.

Dentre os 1.654 sepultamentos realizados no Cemitério da Vila Formosa no mês de abril, um foi o de Zilda. Por medida de segurança, seu túmulo ainda não foi visitado pela família.