O pesquisador Pedro Fernando da Costa Vasconcelos, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), passou 40 dos seus 63 anos observando o comportamento dos vírus, dos quais é um dos maiores conhecedores do mundo.
Sua equipe descreveu mais de 100 espécies de arbovírus (transmitidos por insetos) na Amazônia. Foi a primeira a detectar a presença do zika no cérebro de um recém-nascido, relacionando a infecção de gestantes com a microcefalia. Diagnosticou o primeiro episódio da febre do Nilo Ocidental no Brasil e estudou o comportamento do agente da febre amarela em macacos.
Atuando no Instituto Evandro Chagas, de Belém, investiga ainda o comportamento dos patógenos da dengue, chikungunya, hantavírus e raiva. Aqui, ele adverte que a ciência só conhece 0,1% dos vírus existentes no universo. Acredita que até um bilhão de espécies permanecem completamente desconhecidas e avisa que novas pandemias irão ocorrer. Recém recuperado da covid-19, ele foi entrevistado por email pelo Brasil de Fato.
"Devem emergir muitos vírus que vão causar epidemias, porém ficarão confinados em um ou, no máximo, dois continentes. Esses devem ser em número maior que os que venham a causar pandemias. E, portanto, talvez somados (ou em conjunto) causem maior número de casos e de mortes do que os que venham a causar pandemias", alerta.
Brasil de Fato RS: O senhor ficou surpreso com a pandemia do coronavírus ou era algo que já esperava?
Pedro Fernando da Costa Vasconcelos: Ninguém imaginava o impacto que causaria na população mundial, no comportamento das pessoas, nas reações dos governos. Houve uma transformação do mundo em que vivemos e que deve se estender por muitos anos, talvez décadas. O mundo pós-pandemia deve ser muito diferente de antes da pandemia.
Com o avanço da devastação na natureza e a presença humana em ambientes selvagens e antes protegidos, podemos dizer que novas pandemias fatalmente ocorrerão?
Sim, isso é certo. Quantos agentes virais vão atingir esse patamar de pandêmicos não sabemos, mas certamente outras pandemias por vírus até então desconhecidos devem ocorrer no planeta. Além desses, devem emergir muitos vírus que vão causar epidemias, porém ficarão confinados em um ou, no máximo, dois continentes. Esses devem ser em número maior que os que venham a causar pandemias. E, portanto, talvez somados (ou em conjunto) causem maior número de casos e de mortes do que os que venham a causar pandemias.
Seu trabalho envolveu identificar e descrever mais de 100 espécies diferentes de vírus. Que lição aprendeu com essa convivência com os vírus?
Que é preciso muito cuidado na sua manipulação durante os experimentos. Não deve se experimentar por experimentar. Não conhecemos como esses vírus novos, desconhecidos, se comportarão no laboratório, nos animais de experimentação e nos cultivos celulares.
Nos experimentos procuramos definir a patogenia dos mesmos nos animais, para conhecer os órgãos alvos preferenciais dos vírus. Assim saberemos como eles podem ou devem se comportar nos humanos, causando infecções ou doenças. Mas, por vezes, não funciona assim. Vide o caso dos coronavírus. Os conhecidos há mais tempo estão associados ao resfriado comum. Já os que emergiram recentemente estão associados com doença respiratória grave, caso dos vírus SARS, MERS e SARS-COV-2, este o causador da covid-19.
Quais dos vírus que identificou podem representar um perigo para a humanidade?
É difícil especular. Muitos são relacionados com os vírus que causam doença grave em humanos, mas os isolados pelo IEC (Instituto Evandro Chagas) na Amazônia ou não causam doenças em humanos ou causam com quadro leve geralmente febril. Portanto, eu não me atrevo a propor que este ou aquele é mais propenso para emergir como patógeno de humanos.
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Quais poderiam fazer o trajeto do animal para o homem como aconteceu com o novo coronavírus?
Diversos poderiam se tornar patógenos de humanos. Mas é bom lembrar que a maioria dos vírus que temos estudado e isolado na Amazônia, são arbovírus, ou seja, a transmissão e manutenção dos mesmos se fazem em um ciclo que envolve obrigatoriamente insetos hematófagos como vetores (transmissores), o que não ocorre com o coronavírus.
Assim sabemos que é muito mais fácil para um agente se tornar pandêmico se a transmissão do mesmo é respiratória como no caso dos coronavírus e do vírus da influenza. É possível um arbovírus se tornar pandêmico e temos exemplo deles, casos da dengue e da chikungunya. O Zika quase se tornou uma pandemia, mas felizmente durante sua emergência em 2015-2017 não evoluiu ficando (quase) restrito aos países do continente americano.
Novos vírus silvestres poderiam usar o Aedes como transmissor nas cidades.
O que poderia dizer sobre o alfavírus Mayaro e o orthobunyavírus Oropouche? Que ameaça representam?
São dois arbovírus, vírus enzoóticos (comuns a uma localidade) na Amazônia e periodicamente tornam-se epidêmicos, mas diferem entre si. O Mayaro causa doença febril exantemática com artralgias (dores nas articulações), enquanto o Oropouche causa doença febril e, por vezes, quadro de meningo-encefalite, mas autolimitada e sem registros (até agora) de óbitos, e cujas epidemias ocorrem em áreas urbanas periféricas ou em localidades próximas de matas ou recém colonizadas.
No Mayaro, os surtos são mais limitados e ocorrem em pequenas comunidades que adentram à floresta, pois o transmissor desse vírus, o mosquito Haemagogus, tem hábitos estritamente silvestres. As pessoas são infectadas ao entrarem na floresta.
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Eles poderiam usar como vetores os mosquitos, como aqueles do grupo Aedes que já transmitem a dengue, chikungunya e zika?
O que muitos cientistas propagam é que esses dois vírus podem se urbanizar e serem transmitidos por Aedes aegypti. E, de fato, em estudos experimentais em Aedes aegypti e Aedes albopictus, ambos os vírus se replicaram nessas espécies de mosquitos que se adaptaram muito bem em ambientes urbanos e são associados com a transmissão de dengue, chikungunya e zika.
Que condições teriam para se expandir da Amazônia para o planeta?
Se Mayaro e Oropouche se adaptarem ao Aedes aegypti, certamente eles podem se disseminar onde exista esse vetor e até mesmo se tornar pandêmico, pois não existe imunidade para esses arbovírus na população fora da Amazônia. Mas, insisto, é preciso uma série de fatores atuando em favor para que esses vírus venham a se adaptar aos Aedes e daí se disseminarem.
As ações humanas na floresta facilitam o escape de novos vírus.
O que a ciência, a medicina e os governos poderiam fazer para impedir tal expansão?
Muitos fatores podem ser trabalhados. Um deles é preservar a floresta onde circulam em ciclos enzoóticos entre animais e mosquitos silvestres. Hoje sabemos que as ações humanas sobre a floresta para os mais diversos propósitos, tendem a facilitar o escape de um vírus e a troca e sua adaptação a novos hospedeiros e novos vetores transmissores. Isso provavelmente foi o que ocorreu com o Oropouche que se adaptou ao seu vetor atual Culicoides paraensis (vulgarmente conhecido como maruim) e processo semelhante pode estar contribuindo também para essas emergências do Mayaro.
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Seu trabalho está direcionado para os arbovírus. Existem os nativos, mas também os exóticos, como o vírus do Nilo Ocidental. Ele está presente no país? O que causa?
O vírus do Nilo Ocidental chegou nas Américas em 1999 por Nova York, quando ocorreu um surto no zoológico da cidade. Daí se disseminou pelos EUA e em 2003, quatro anos após, já havia atingido o país de costa a costa e também chegado ao Canadá. Em seguida, desceu para a América Central e finalmente a América do Sul.
Há registros desse vírus na Venezuela, Peru, Argentina e Brasil. Aqui nós isolamos o Nilo Ocidental de equinos no Espírito Santo e confirmamos diversos casos humanos e animais no Piauí e Ceará. O vírus parece que está se capilarizando silenciosamente, e esporadicamente tem sido associado com doença seja em humanos, seja em animais. O Nilo Ocidental deve no futuro continuar se tornando endêmico e paulatina e periodicamente emergir em pequenos surtos ou epizootias com raros casos em humanos.
E quanto ao vírus Nipah que causa encefalite e, em alguns casos, demência?
Esse é um vírus extremamente perigoso, mas não é arbovírus. É zoonótico, transmitido por morcegos na Ásia, onde é endêmico em países como Malásia, Sri Lanka, etc. Os surtos nesses países têm apresentado letalidade de aproximadamente 20% e a prevalência das sequelas neurológicas é bastante elevada, entre as quais a demência tem sido muito frequente. Mas eu penso que continuará como problema localizado no sudeste da Ásia.
Além do coronavírus, o Brasil convive em 2020 com o avanço da dengue em vários estados ao ponto de termos, hoje, mais de 820 mil casos. Como a dengue, uma doença discreta até os anos 1970/80, tornou-se um flagelo anual?
Pergunta interessante, mas, no caso do dengue, o fator humano foi fundamental na disseminação da doença ao facilitar a expansão do seu transmissor Aedes Aegypti. Se houvesse um controle vetorial eficiente, o dengue se limitaria a poucos casos (e também o chikungunya, zika e outros vírus transmitidos por esse mosquito).
Como os países fracassaram no controle vetorial do aedes, as epidemias se tornaram cada vez mais frequentes e com muito mais casos. E o Brasil é o país que mais notifica casos quase sempre acima de um milhão, e mesmo assim a subnotificação é muito grande. A [Organização Mundial de Saúde] OMS estima que, para cada caso notificado, ocorreriam entre 10-100 outras infecções clínicas e subclínicas e inaparentes. Portanto, dá para se ter ideia do impacto dessa arbovirose na vida do cidadão.
São uma loucura esses movimentos antivacinas.
A febre amarela foi outra moléstia que reapareceu...
Sim é verdade. O Brasil vivenciou uma grande epidemia entre 2016 a 2019 com mais de 2500 casos notificados e quase 100 mortes registradas. Um escândalo para uma doença com uma vacina ativa e eficaz há mais de 80 anos!
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A vacinação é uma vitória humana na luta contra a doença e a morte, mas, recentemente, surgiram grupos antivacinas que, através de notícias falsas, questionam a eficácia e os benefícios da imunização...
São uma loucura esses movimentos antivacinas. É bom lembrar que todos eles (os pais) foram vacinados na infância, mas agora questionam a eficácia das vacinas e não querem que seus filhos sejam vacinados. A título de exemplo, vamos voltar à atual pandemia. Se nós tivéssemos uma vacina para a covid-19, certamente talvez nem 10% dos casos registrados e de óbitos teriam ocorrido.
A vacinação é muito importante. A única doença erradicada do planeta, a varíola, só se conseguiu isso graças aos esforços conjuntos dos países e da OMS. Há décadas ninguém morre de varíola. Muita gente nem sabe o que é, mas, no passado, foi uma doença terrível. A vacinação universal resultou na erradicação em definitivo. Aí eu pergunto: como ser contra as vacinas? A poliomielite é outro exemplo. Muito em breve devemos estar livres para sempre desses três vírus da pólio. E graças à vacinação universal das crianças!
Eu diria que desconhecemos mais de 99,9% da virosfera do planeta
A cobertura vacinal caiu 20% e, em 2019, o Brasil perdeu o certificado de país livre do sarampo que obtivera três anos antes. Como interpreta esse retrocesso?
Falta de coesão nos programas estaduais de vacinação junto ao PNI [Programa Nacional de Imunizações]. Infelizmente, os números das coberturas vacinais estão bem abaixo do recomendado e, além dessa falta de entrosamento entre governo federal, governos estaduais e municipais, esses movimentos antivacinas têm influenciado os pais vacinados e protegidos, de fazer o mesmo com seus filhos. Daí essa queda.
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Se for possível usar uma porcentagem, qual percentual ainda desconhecemos dos vírus existentes no mundo?
Eu diria que desconhecemos mais de 99,9% da virosfera do planeta. Hoje temos catalogado cerca de 10 mil vírus e se estima que devam existir vários milhões de vírus, talvez até passe do bilhão. Portanto, temos pouco conhecimento sobre esses agentes de doenças.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Leandro Melito e Katia Marko