APARTHEID PALESTINO

Por que a anexação de territórios da Cisjordânia por Israel é ilegal?

Entenda por que plano apresentado por Trump e Netanyahu gera repúdio internacional e manifestos em defesa da Palestina

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Especialistas explicam fatores históricos e políticos que levam ao contexto atual do conflito Israel-Palestina - Foto: Abbas Momani | AFP

Em meio a críticas contundentes da comunidade internacional, o processo de anexação de partes da Cisjordânia pelo Estado de Israel, anunciado para ter início na última quarta-feira (1º), foi adiado sem previsão de nova data para a retomada da discussão. 

O plano apresentado como o “Acordo do Século” pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ao lado de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, prevê a apropriação por parte de Israel de 30% das colônias e territórios palestinos no Vale do Jordão, localizado a 50 km de Gaza, assim como a criação de um Estado Palestino restrito às áreas restantes. 

A Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, se somou à oposição internacional e declarou que considera “ilegal e perigoso” o projeto israelense de anexação da Cisjordânia.

"A anexação é ilegal. Ponto final. Qualquer anexação, de 30% ou de 5% da Cisjordânia”, posicionou-se em comunicado na última segunda-feira (29). 

Mas, por que a considerada “solução para o fim do conflito Israel-Palestina” pelos seus defensores tem enfrentado uma oposição tão grande nas últimas semanas? 

Segundo explica Arturo Hartmann, doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, a anexação de territórios ocupados é considerada um crime internacional, previsto pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.

A resolução 242 foi aprovada em 1967, após a Guerra dos Seis Dias, quando as forças israelenses capturaram territórios palestinos e lá permaneceram – também de forma ilegal, já que as áreas de Cisjordânia e Faixa de Gaza são reconhecidas pela lei internacional como terras palestinas.

Conforme afirma o pesquisador, a ocupação de territórios está prevista temporariamente na lei internacional em meio a um contexto de ameaça. Mas, mesmo após o fim dos conflitos de 1967, Israel seguiu dominando territórios palestinos em nome da construção e expansão de um Estado judeu. 

“Israel fragmentou, violentou e prejudicou a economia dos territórios palestinos. A presença de Israel [nesses territórios] é ilegal, um crime internacional. Isso pré-anexação já é um problema. Agora estamos falando de algo 50 anos depois, e Israel está fazendo exatamente o que não podia ser feito a partir da ocupação dos territórios”, critica Hartmann.

Ao anunciar a proposta, Trump argumentou que é preciso uma resolução a “partir da situação atual” e não com referência em resoluções da ONU ou leis previstas no direito internacional.

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Para a ativista palestino-brasileira Soraya Misleh, a anexação de parte da Cisjordânia proposta por Netanyahu “é a legitimação do Apartheid”. 

“É a consolidação do projeto colonial sionista como se pretendia desde sempre. Essa anexação busca sepultar, de vez, a causa palestina. É preciso dizer que essa anexação começou lá atrás. É uma Nakba contínua”, critica, citando a criação do Estado de Israel em 1948, quando mais de 700 mil palestinos foram expulsos das terras onde viviam. Nakba, em árabe, significa catástrofe. 


Crianças cercadas na aldeia palestina de Al-Walaja, na Cisjordânia / Foto: Marwan Baghdadi/UNRWA

A presença das forças israelenses nos territórios palestinos, que em parte são hoje alvo da anexação, de acordo com Misleh, é perpetuada a partir de ataques e repressão permanentes, que, aos poucos, promovem o genocídio do povo palestino. 

“Anteontem, Israel atirou em pescadores de Gaza. E não vimos notícia nenhuma na grande mídia sobre isso. Esse é o cotidiano dos palestinos. Toda semana temos informações que Israel prendeu e colocou mais um entre presos políticos. Existem mais de 5 mil, incluindo mulheres e crianças. Gaza está sitiada há 13 anos em um bloqueio desumano. O que aconteceu na Palestina foi um plano de limpeza étnica que segue até hoje”, afirma.

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Arturo Harmann complementa que, as regiões do Vale do Jordão cobiçadas por Israel, são áreas de produção agrícola, compostas por um cinturão verde que é a região mais fértil para plantação na Cisjordânia. 

Ao anexar as terras estratégicas, a produção agrícola do povo palestino seria completamente comprometida, assim como suas condições de subsistência. “É mais uma fase da colonização secular que existe”, denuncia. 

Recuo

A ameaças de imposições de sanções financeiras e de não reconhecimento da anexação por parte de países da Europa levou a ausência de um “sinal verde” de Trump para dar prosseguimento ao processo, rejeitado desde o início pela Autoridade Nacional Palestina (ANP).

Especialista na questão Palestina, Hartmann comenta que a própria incerteza em relação à reeleição de Donald Trump influenciou o recuo do governo israelense neste momento. O candidato do partido democrata, Joe Biden, é contrário à anexação, o que poderia limar o apoio estadunidense, além de aumentar o rechaço internacional. 

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Impasses entre Netanyahu e o ministro da Defesa, Benny Gantz, que se opõe a movimentos unilaterais, também teriam levado ao adiamento da anexação. Gantz, por sua vez, declarou que o plano está em fase de preparação e também não foi executado devido ao contexto da pandemia do novo coronavírus. 

Já na avaliação de Soraya Misleh, a proposta unilateral gerou cisão até mesmo entre colonos ministros israelenses, principalmente, pela ameaça de sanções econômicas por parte da comunidade internacional. 

“Há controvérsias, não por uma questão de humanidade, mas porque eles enxergam a perda de possibilidades econômicas. E é esse chamado que estamos fortalecendo, pressionando para que de fato aconteçam sanções a Israel”, diz a autora da obra Al Nakba: Um estudo sobre a catástrofe palestina.


Protestos de palestinos contra anexação de assentamentos têm sido registrados ao longo das últimas semanas / Foto: Jake Guez/AFP

Solidariedade

Como parte do movimento internacional em repúdio ao plano de Netanyahu, um manifesto criado por integrantes do movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) da África do Sul, foi assinado por diversos ex-presidentes da América Latina. 

Entre eles, os brasileiros Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, o paraguaio Fernando Lugo, e Pepe Mujica, do Uruguai. O equatoriano Rafael Correia e Ernesto Samper, ex-presidente da Colômbia, também são signatários do movimento, que já reuniu assinaturas de mais de 300 figuras públicas no continente. 

Intitulado Contra o Roubo do Século de Trump e Netanyahu — Sanções ao Apartheid Israelense, o documento também conta com a assinatura de personalidades brasileiras como Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Hatoum.

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“A iminente ação israelense de anexação violaria princípios fundamentais do Direito Internacional, incluindo o direito à autodeterminação e a proibição de anexação de territórios pela força”, registra o manifesto.

“Décadas de processos de negociação têm sido utilizadas como armas por sucessivos governos israelenses para aumentar e fortalecer o roubo de terras palestinas, forçar o deslocamento de comunidades e expandir os assentamentos ilegais", continua o texto.

A principal proposta do documento é o fim do comércio de armas e cooperação na área militar e de segurança com Israel, assim como a proibição do comércio com os assentamentos ilegais e embargo militar. 

Palestina livre

No Brasil, uma campanha nas redes sociais também tem reunido e divulgado depoimentos contrários à anexação. No Instagram @palestina2020livre, é possível encontrar posicionamentos de pastores de diversas entidades cristãs, políticos e outros apoiadores. 

Entre eles, o presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil, pastor Inácio Lemke, a teóloga Romi Márcia Bencke, pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e o Padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua.

A palestina-brasileira Soraya Misleh, que também integra a campanha, destaca que, em 2011, na África do Sul, o Tribunal Russell (Tribunal Internacional de Crimes de Guerra) reconheceu o regime imposto por Israel aos palestinos como Apartheid.

A definição se aplica a qualquer situação no mundo em que se apresentem três elementos: dois grupos raciais que possam ser identificados, atos desumanos contra o grupo “subordinado” e ações cometidas sistematicamente a partir de um regime institucionalizado de dominação de um grupo sobre o outro.

:: Confira os depoimentos em vídeo contra a anexação :: 

A ativista adiciona ainda que além dos impactos na vida dos milhares de palestinos que vivem na Cisjordânia ocupada, o “Acordo do Século” dá indicativos de que os palestinos que vivem em Israel possam ser expulsos, gerando uma nova onda de refugiados e elevando a tensão internacional.

“É por tudo isso que estamos repudiando e chamando para que as pessoas abracem de fato a Palestina. É urgente e é uma questão de vida ou morte", clama Misleh.

Contradições

Quando se trata da violência histórica contra o povo palestino, Arturo Hartmann aponta que há um grande dilema. Neste momento, a comunidade internacional se posiciona contra a anexação, mas permitiu a dominação ilegal de décadas por parte de Israel, omitindo-se de diversas formas e, em casos como o dos Estados Unidos, apoiando completamente o Estado judaico.

“Eles estão sustentando uma estrutura que permitiu chegar a isso há 20, 30 anos. Quando o processo de Paz começa, se cria uma formatação econômica que permite a Israel manter a colonização e lima qualquer possibilidade de que os palestinos se organizarem para a resistência. Israel não podia ter se mantido nos territórios [após 1967]”, critica o pesquisador. 

Caso o plano de anexação de fato seja executado, a perspectiva é de acirramento da tensão e perpetuação da não responsabilização de Israel por seus crimes históricos. Hartmann pontua ainda, com tomada das terras palestinas, o processo colonialista tende a se expandir ainda mais ao longo dos anos. 

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Do ponto de vista da reação do povo palestino ao processo, o especialista avalia que o panorama está em aberto, mas elementos como a ausência de coesão social, fragmentação das forças políticas e situação econômica da população, desenham um cenário desfavorável para a Palestina.

“Um levante popular espontâneo não pode ser previsto. A faísca pode ser qualquer coisa. Há um acúmulo. E o ponto é: qual vai ser a faísca que vai fazer explodir esse acúmulo. A anexação pode ser o passo mais dramático para isso”, afirma. 

Ainda que haja um levante, Hartmann, baseado na análise dos fatos históricos atuais, não enxerga um movimento bem sucedido. “Que apoio internacional os palestinos estão de fato recebendo? A comunidade internacional teria que pegar tudo o que fez nos últimos 30 anos e dizer: ‘Erramos em tudo, vamos mudar tudo o que fizemos’. Mas para isso é preciso uma correlação de forças que não existe”. 


Palestinos repudiaram plano apresentado por Trump e Netanyahu / Foto: Reprodução/Internet

Edição: Rodrigo Durão Coelho