Por Elisa Zaneratto Rosa* e Giuliana Lima**
Acompanhar a situação e a evolução epidemiológica da covid-19 é um desafio, há muito discutido. Não faltam problemas e mecanismos que impedem a apreensão da real dimensão da pandemia no Brasil, em cada município e estado, subsidiando e permitindo a avaliação e o debate público sobre políticas a serem adotadas.
Podemos citar, nesse conjunto: as subnotificações decorrentes de uma política que recusou o caminho da testagem em massa e do rastreamento, fazendo com que um imenso número de internações por síndrome respiratória aguda ou de mortes não devidamente diagnosticadas restassem sem resposta, assim como milhares de casos não fossem jamais identificados; as divergências sobre o modo de apresentação dos dados, que dificultam o real acompanhamento da evolução da pandemia; períodos em que dados não são atualizados por razões diversas, deixando de constar nas estatísticas; além de medidas deliberadas e explícitas, como a assumida pelo governo federal, para evitar a devida caracterização da gravidade da pandemia no país.
É nesse cenário de muitos dados imprecisos que são implementados planos de reabertura por gestores locais, produzindo um clima social de que "a pandemia já passou, ou ao menos sua fase mais grave".
Ao mesmo tempo, não vemos baixar o número geral de mortes e novos casos, que, inclusive, atingem em algumas datas novos recordes, seja no país, nos estados ou em diferentes localidades, o que nos faz ter apenas a certeza de que a pandemia não está sob controle.
Diante dessa realidade, temos muitos planos de reabertura e nenhum plano efetivo de contenção. O município de São Paulo é um caso emblemático. Desde o início de junho, em função de sua categorização na chamada fase 2 pelo governo estadual e, posteriormente, na fase 3, vivemos um plano progressivo de reabertura, que não vem acompanhado, contudo, das medidas internacionalmente reconhecidas para o combate à pandemia.
Não há qualquer medida sanitária de testagem em massa, de rastreamento de casos, ou de garantia de isolamento onde as condições para tal não estão dadas.
A reabertura justifica-se, em grande medida, pela queda da média da taxa de ocupação de leitos em UTI, assim como por uma diminuição do número de óbitos por covid-19. Esses dados, contudo, devem ser olhados cuidadosamente, de modo a não significar o relaxamento dos cuidados.
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A semana epidemiológica encerrada em 22/06 teve pico de número de mortes (752) no município de São Paulo, com duas quedas consecutivas (622 em 29/06 e 608 em 06/07). Contudo, essa queda é discreta e, para falarmos em tendência de queda, precisamos de ao menos 3 semanas de queda consistente (para maiores informações, vide gráfico sobre número de óbitos por covid-19 no município de São Paulo, de responsabilidade do médico Carlos A. G. Eld).
Podemos estar diante de uma tendência positiva, mas que exige de todos, inclusive do poder público, vigilância e responsabilidade. Mais difícil é, contudo, enxergar a realidade sobre o crescimento dos índices de contaminação na capital paulista. Diariamente o município de São Paulo divulga um boletim epidemiológico no qual não informa, por exemplo, o número de novos casos.
Para conhecer esse número, cabe a quem consulta os boletins diariamente verificar o acréscimo diário de casos, assim como a sua evolução histórica. Esse levantamento identifica pontos críticos, como dias em que o número total de casos é menor que os anteriores, ou dias em que há um acréscimo que acumula dados não contabilizados anteriormente.
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A análise por semana epidemiológica é um recurso para lidar com essa irregularidade ou oscilação diária resultante de problemas no processamento dos testes ou divulgação dos dados.
Feito esse levantamento, identificamos que a contaminação semanal ainda é ascendente na cidade de São Paulo. Ainda que possamos ter em alguns momentos índices menores de crescimentos da contaminação semanal, é fato que, a cada semana, é maior o número de novas contaminações em relação à semana anterior.
Isso quer dizer que os riscos de contágio são também maiores a cada semana, ainda que as medidas de flexibilização, ou talvez a banalização das mortes, parecem ter nos deixado mais seguros e menos amedrontados.
Dar publicidade a essa evolução histórica de novos casos no município é um compromisso de alerta à população sobre os riscos que corre diante de uma política de reabertura que não vem acompanhada por uma política efetiva de combate à pandemia. A essa ausência, se deve, aliás, a posição ocupada pelo Brasil no cenário mundial em relação ao número de contágios e mortes. Desastrosa!
Considerados os muitos casos que nunca entraram e nunca entrarão nessa conta, temos um projeto em curso de assassinato da população, ou de uma parcela dela, que caminha a passos largos, entre dados parciais e ausência de projetos para a sua proteção.
Quanto ao município de São Paulo, estejamos atentos e cautelosos! Estamos longe da superação da pandemia. Perdemos muitas vidas diariamente e o número de pessoas que se contaminam é maior a cada semana. A concentração das mortes nas periferias da cidade é, sem dúvida, uma das explicações possíveis ao clima de que está tudo melhorando.
Afinal, as mortes das periferias pobres e negras sempre foram invisíveis à sociedade paulistana. Elas gritam na dor sentida pelas vidas que ficam e que seguem invisibilizadas por uma humanidade que insiste em não reconhecer sua existência. O monitoramento efetivo e as reais medidas de proteção, pelo que parece, se não partirem da população não serão garantidas como política pública.
Aliás, a posição oficial do Estado brasileiro hoje é pela não obrigatoriedade do uso de máscaras... Portanto, restou a cada um e ao compromisso ético de organizações coletivas o posicionamento e as ações para que a população, sobretudo a população das periferias, que é quem mais sofre os efeitos dessa realidade, não seja levada ao abatedouro, como se fossem gados marcados para morrer. É, sem dúvida, uma batalha desleal...
*Elisa Zaneratto Rosa: psicóloga, doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do curso de Psicologia e do Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo . Foi tutora do PET Saúde da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC SP (2012-2014) e atualmente é tutora do PET Saúde Interprofissionalidade. Foi presidente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e é membro do Instituto Silvia Lane - Psicologia e Compromisso Social.
**Giuliana Lima: Bacharel em Ciências Jurídicas pela UnG e especialista em direito das novas tecnologias com habilitação em docência superior.pela Escola Superior de Advocacia de SP (2009). Tutora do Curso de Extensão: Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas da Faculdade de Medicina da USP em parceria com o CNJ (2012). Atualmente é secretária de formação Política e Relações Sindicais do Sindicato dos trabalhadores das Autarquias de Fiscalização do Exercício Profissional e Entidades Coligadas no Estado de São Paulo.
Edição: Leandro Melito