Como em muitos outros países, o isolamento social devido à pandemia do coronavírus se refletiu em um aumento de violência doméstica na Argentina. Mulheres e crianças são os grupos mais vulnerabilizados quando submetidos ao confinamento obrigatório, que apenas ressaltou problemas estruturais históricos.
Desde o início da quarentena no país, em março, até junho, houve um aumento de 48% de denúncias em relação a 2019 feitas através da linha 144, que faz assessoria a vítimas de violência de gênero. Segundo levantamento do Observatório das Violências de Gênero "Ahora que sí nos ven", de janeiro a 30 de junho deste ano, foram 162 feminicídios no país, sendo 81 durante a etapa do isolamento social. A média é de um feminicídio a cada 27 horas. Nos bairros populares, o aumento de pedido de acompanhamento por vítimas de violência de gênero foi de 46%, segundo a organização comunitária La Garganta Poderosa.
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No último dia 4 de julho, o Ministério de Mulheres, Gêneros e Diversidade anunciou um novo Plano de Ação Nacional em resposta a esse cenário, para os próximos dois anos, como uma mudança de paradigma. "Mudamos a abordagem das violências individuais para violências integrais", explicou a ministra Elizabeth Gómez Alcorta durante a apresentação do plano, que tem como foco mulheres e a população LGBT.
"Somos conscientes de que o Estado tem a obrigação de dar as condições subjetivas e materiais para que uma pessoa saia de uma situação de violência", disse. O plano traça três focos principais de atuação: as violências extremas (feminicídios, travesticídios, transfeminicídios), a autonomia econômica das pessoas em situação de violência e a dimensão cultural e estrutural da problemática.
A linha 144 contará com uma modernização no plano anunciado. Este ano, as próprias atendentes da linha fizeram uma greve por estarem precarizadas e sem receber seus salários, equivalentes a cerca de R$1.900.
Os casos de maus tratos domésticos normalmente envolvem – de forma interseccional – aspectos como classe social, gênero e violência infantil. "Separar a questão de gênero e infância é difícil, não posso deixar de uni-las em sua complexidade", reflete a advogada especialista em infâncias Laura Taffetani, integrante da Fundação Pelota de Trapo, que trabalha especialmente com crianças.
"No aspecto cultural, há obviamente uma cultura machista, sempre houve, mas quando existem outras condições, esse problema se torna mais exacerbado: quando se coloca o ser humano em situações de sobrevivência. A isso se adiciona uma cultura adultocêntrica, onde as crianças são continuamente infantilizadas, colocadas em um lugar que não o de protagonistas de seus processos", explica.
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Crianças em isolamento
Segundo a conselheira tutelar da Cidade de Buenos Aires Yael Bendel, em entrevista àTelam, 80% das violências ocorrem dentro de casa, cometidas por um familiar ou uma pessoa próxima. "Quem detecta esses casos costumam ser os professores, médicos ou alguém relacionado às atividades fora de casa", disse. Sem o auxílio externo, o agressor tem "mais tempo e mais impunidade".
A dificuldade de identificar certas violências se dá, em grande parte, pela invisibilização e a naturalização perpetuadas na cotidianidade. Com a desculpa de entregar comida ou durante atendimentos médicos nos bairros, faz-se um acompanhamento também da situação familiar durante a pandemia.
As crianças recebem toda uma carga emocional em relação à violência, e são reprodutores das coisas que os adultos ensinamos.
Espaços comunitários destinados ao desenvolvimento e cuidados de crianças e adolescentes estão atuando durante a quarentena como pontos de distribuição de comida. É o caso da organização Resistir y Luchar no bairro Cura Brochero, no distrito Florencio Varela, o segundo mais pobre da província de Buenos Aires. Integrante da organização, Carina Peralta ressalta que, além de isoladas em casa, crianças e adolescentes têm uma carga emocional diante das dificuldades das famílias, agora acentuadas.
"Para um setor muito amplo da população argentina, o lema 'fique em casa' significa conviver com o agressor e não ter trabalho", afirma. "As pessoas que vivem de bico não estão em um bom momento. Os espaços de atividades recreativas estão fechados. Algumas crianças não têm contato com as professoras, por não ter internet ou celular: repassam as fotocópias das tarefas entre os vizinhos. Isso também gera ansiedades e frustrações", conta Carina.
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A diretora de um jardim de infância de Florencio Varela, Sandra López, aponta que, devido ao corte abrupto das classes, não foi possível fazer um diagnóstico situacional. "Na zona onde trabalhamos, a maioria dos pais dos alunos não tem trabalho regular", diz. Sandra destaca o papel da instituição de abrir um canal de comunicação aberta e fluida com os alunos. "Como diretora, costumo dizer que sempre devemos contar com uma 'orelha verde que não amadureça'; essa tem a possibilidade de escutar tudo o que não se escuta, e de buscar soluções com as melhores ferramentas que possamos contar."
Violências que se cruzam
Debater a relação dos maus-tratos intrafamiliares com a desigualdade social faz-se necessário diante da complexidade de violências que operam a partir de estruturas e que afetam o emocional. São as chamadas "violências herdadas", como aponta Carina Peralta.
Essas relações de violência, muitas vezes, têm a ver com a sobrevivência.
"Há mulheres que vêm há quatro, cinco gerações vivendo nessa mesma lógica por herança familiar. As crianças recebem toda uma carga emocional em relação à violência, e são reprodutores das coisas que os adultos ensinamos. Acredito que a forma de mudar essa sociedade é dar contenção e muito amor", afirma.
Laura destaca que é difícil obter números oficiais precisos, devido às barreiras inclusive institucionais que muitas vezes reforçam as violências contra as mulheres, mas que os dados já mostram que em pelo menos 20% dos casos de feminicídios, as crianças da família têm o mesmo destino.
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"E muitas vezes a violência vem da mãe ou é consentida por ela", afirma Laura. "Essas relações de violência, muitas vezes, têm a ver com a sobrevivência, ainda que pareça muito dura essa afirmação. E para construir outro tipo de relação, é preciso reconhecê-la como uma realidade e armar circuitos alternativos."
Edição: Rodrigo Chagas