Coluna

Uma paz sobre 70 mil mortos

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Bolsonaro durante coletiva de imprensa onde anunciou que está com covid-19 - Reprodução
A versão recuada de Bolsonaro nas últimas semanas tinha garantido a confiança da elite econômica

Consistente como uma gelatina, a tal frente ampla sem objetivo definido fez água ao primeiro sinal de moderação de Bolsonaro, que agora se sente à vontade para voltar a atuar como garoto-propaganda da cloroquina e boicotador geral das medidas de distanciamento social. Sinais que segue vigente o acordo entre os Poderes sobre uma pilha de 70 mil mortos, como veremos nesta edição.

1. Sem moderação. Já perdemos a conta. Basta um leve sinal de Bolsonaro para que analistas políticos, presidentes de instituições e até defensores de frentes democráticas suspirem aliviados. Finalmente o Brasil vai poder avançar com as reformas! Mas o próprio Bolsonaro trata de lembrá-los de que são, no mínimo, avalistas de um projeto de destruição.

Depois de algumas semanas de silêncio, em um recuo tático, na visão de Marcos Nobre, ele voltou com carga total ao anunciar que foi infectado pelo coronavírus: fez propaganda da cloroquina, tirou a máscara em público e voltou a criticar governadores e prefeitos pelas medidas de distanciamento social. A revelação do teste positivo veio bem a calhar: coincidência ou não, nesta semana o filho Flávio depôs pela primeira vez ao Ministério Público do Rio no inquérito das rachadinhas.

Enquanto isso, a defesa de Fabrício Queiroz impetrou habeas corpus e o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio Noronha, bem relacionado com o bolsonarismo, prontamente atendeu. A desconfiança no diagnóstico se justifica, basicamente, porque não se pode confiar em Bolsonaro, sensação que acomete não somente a nós, como a diplomatas do mundo inteiro.

Até porque é estranho: em março, mais de 20 pessoas que estiveram com Bolsonaro na coronatrip aos Estados Unidos pegaram o vírus, exceto Bolsonaro. Agora, apenas Bolsonaro, e seu entorno não. Se for verdade, é preciso monitorar o estado de saúde de dezenas de empresários, ministros e membros da embaixada norte-americana também estão a perigo, como aponta este bom resumo do site Outras Palavras, além dos figurantes das suas lives semanais.

Já a propaganda da cloroquina, mencionada 17 vezes na entrevista em que anunciou o teste positivo, também pode ser uma boa maneira de desencalhar o estoque de 1,8 milhão de comprimidos produzidos pelo Exército, alvo de investigação pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que estão sendo desovados para a população indígena, com o potencial de causar uma série de efeitos colaterais, como arritmia cardíaca e convulsão.

Só que, enquanto recomenda o uso de um remédio ineficaz e potencialmente danoso, rejeitado em diversos países, inclusive na pátria mãe EUA, o próprio Bolsonaro se cerca de cuidados, fazendo dois eletrocardiogramas por dia, cuidados esses inalcançáveis para a maioria da população, que agora aumenta a pressão sobre profissionais de saúde, como verificado em São Paulo, e se espalha pelo interior brasileiro a partir da articulação do ministério da Saúde com prefeituras.

2. Um passo atrás, dois à frente. Com ou sem cloroquina, a versão recuada de Bolsonaro nas últimas semanas tinha garantido a confiança da elite econômica do país, que verdade seja dita nunca se incomodou muito com a versão sem freios. Como se sabe, a paz bolsonariana não se deu por motivos civilizatórios, mas pelo medo causado com a prisão de Queiroz.

Ainda assim, foi suficiente para acabar com a tal Frente ampla Direitos, que se deu por satisfeita com a versão “moderada e com centrão” de Bolsonaro, como confirma Alberto Carlos Almeida na Veja e Fernando Henrique Cardoso, na prática, jogando a pá de cal nos Direitos Já que, afinal de contas, eram para defender direitos sem atacar quem os ameaçava, num misto de ingenuidade com hipocrisia.

Como resumiu Alon Feuerwerker, não existe frente sem programa político e frentes “de resistência” se desmancham tão fácil quanto se agrupam. Na linha de ver para crer, Rosângela Bittar questionava a conversão de Bolsonaro e deixava claro a prova dos nove: o governo teria que alterar sua política hiper-ideologizada e subordinada aos EUA nas relações internacionais para demonstrar que realmente alguma coisa havia mudado.

A pacificação traz um outro problema para Jair, afinal o bolsonarismo só existe pelo confrontamento e pelo estado de guerra permanente, como lembra Marcelo Godoy. Sem a convocação permanente para a guerra cultural contra o marxismo, o oriente, o globalismo, a educação, o vírus e tudo o que não seja idêntico a eles mesmos, o que sobra do bolsonarismo?

E, neste caso, seja pela incompetência no combate à covid-19, seja pela pacificação, Bolsonaro vem perdendo força sucessivamente nas redes sociais, até então seu reduto. Autoconfiante como sempre, na sua própria bolha, é bem possível que Bolsonaro encerre logo a fase paz e amor para voltar ao estilo que, paradoxalmente, o levou ao Planalto e pode tirá-lo de lá.

3. Por falar em fake news. É provável que a decisão do Facebook não tenha a ver com um repentino escrúpulo de consciência, mas como resultado do boicote das marcas que pararam de anunciar na plataforma, em campanha contra a permissividade com relação a discursos de ódio. Fato é que, na quarta (8), a empresa de Mark Zuckerberg removeu 88 contas e páginas ligadas à família Bolsonaro, ao PSL e ao próprio gabinete da presidência da República.

Foram apontados como responsáveis diretos por páginas de informações falsas um assessor especial de Bolsonaro e outras pessoas que atuaram ou ainda atuam como assessores de parlamentares bolsonaristas, entre eles um funcionário do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), mostrando como Bolsonaro usou uma estrutura de cargos em gabinetes para financiar os apoios “espontâneos” nas redes.

A ação do Facebook comprova a existência do chamado gabinete do ódio, responsável por ataques a adversários do bolsonarismo e também pelo fogo amigo que atingiu figuras como Luiz Henrique Mandetta e Sérgio Moro. E também joga uma luz alta nas ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que apuram os disparos em massa de notícias falsas durante a campanha eleitoral de 2018.

A CPMI que investiga as fake news pediu que o Facebook compartilhe os dados das contas excluídas da plataforma. “A questão agora é como as instituições vão reagir ao relatório divulgado pelo Facebook”, questiona a colunista Miriam Leitão.

4. Não verás reação nenhuma. Por analogia, uma resposta sobre como será a reação das instituições foi dada pelo presidente do STJ, ao decidir não só mandar Fabrício Queiroz para a prisão domiciliar, como conceder esse benefício à esposa, Márcia Aguiar, nada menos do que foragida desde 18 de junho.

Não saímos do momento “pequeno acordo nacional”, como descrito na edição passada. Em sua coluna no Valor Econômico desta quinta, Maria Cristina Fernandes antecipava que João Otávio de Noronha ajudaria até a mulher de Queiroz, “garantindo uma pausa ao pesadelo da delação” e se cacifando na corrida por uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF). Bingo.

A imunidade de Bolsonaro incluiria o pedido de R$ 30 bilhões em créditos extraordinários a ser enviado ao Congresso, para gastos de ministérios que irrigarão as bancadas governistas, e a blindagem promovida por Augusto Aras, mas teria mais incertezas na relação com os presidentes da Câmara e do Senado. Até o TCU já estaria convencido pelo clima de pacificação e sinalizado que pode rever decisões negativas ao governo.

De qualquer sorte, é sempre válido recorrer à máxima do Barão de Itararé: de onde menos se espera é de onde não sai nada mesmo. Por mais que Bolsonaro tenha rompido o silêncio e mostrado que será o que sempre foi, as instituições seguem preferindo ser avalistas de um presidente que quer ocultar suas relações com as milícias e manter em curso um projeto verdadeiramente genocida, no tocante à questão do coronavírus.

No caso da população indígena, como já dissemos acima, não se trata apenas de desovar cloroquina: se trata de prejudicar o atendimento a esta população, como ficou claro na sanção de pontos do projeto de lei que previa uma série de medidas para proteção dos povos indígenas contra a pandemia. Este pequeno acordo nacional também tem o significado de dar sinal verde para que Bolsonaro mantenha a não-política de combate à pandemia.

Estamos superando as 70 mil mortes, a média semanal mostra que o número de óbitos segue crescendo e o Ministério da Saúde comemora uma estabilização em mil mortes por dia, enquanto a volta dos campeonatos estaduais ajuda a dar contornos de surreal normalidade.

A ressurreição da cloroquina, que destacamos no primeiro ponto, coincide com a escalada do lobby de um grupo de médicos ligados ao empresário Carlos Wizard, grupo esse que se reuniu com o ministro da Saúde no mesmo dia do anúncio do teste e que tem, entre os membros, responsáveis por um site que traz informações falsas sobre o tratamento da covid-19.

Além da cloroquina, defendem o uso de remédios como azitromicina e ivermectina, a despeito da ineficácia ou dos efeitos colaterais. Nas redes sociais, uma secretária do Ministério da Saúde culpou prefeitos e governadores “que impediram ou dificultaram o acesso às medicações para tratamento da doença”, e o próprio ministério agora recomenda que se procure atendimento aos primeiros sintomas, reforçando a orientação para o uso destes medicamentos em casos leves. Repetindo: é isso que está se permitindo continuar.

5. Queimado. Ainda no terreno da desfaçatez, depois de um ano e meio assistindo Ricardo Salles passar a boiada no Ministério do Meio Ambiente, parte da elite empresarial decidiu cobrar medidas ambientais do presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, o vice Hamilton Mourão. Há três semanas, outras 29 instituições financeiras avisaram que o desmatamento afastaria investidores do país.

“Nenhum patrão pode se dizer surpreso com as ações do governo nessa área. Os produtores sabiam que a devastação prejudicaria a reputação do Brasil e faria mal aos negócios. Ainda assim, eles preferiram apostar num presidente que queria afrouxar restrições e carregava um ministro ultraliberal como amuleto” escreve Bruno Boghossian na Folha.

Por hora, Mourão promoveu um encontro entre investidores e ministros,  propôs sete medidas genéricas para a questão ambiental e até está sinalizando com uma “moratória absoluta” de quatro meses nas queimadas como resposta às manifestações, enquanto o governo investe em publicidade no exterior para tentar melhorar a imagem do país. Segundo José Antônio Severo, no Divergentes, além disso, a ministra Tereza Cristina está tentando convencer Mourão a implementar uma meta de desmatamento zero para a Amazônia.

O protagonismo de Mourão ajuda a esconder Salles, mas expõe outro problema: a incompetência das Forças Armadas em lidar com o tema. O site The Intercept revela que o uso das Forças Armadas para fiscalização ambiental é dez vezes mais caro que o trabalho dos fiscais do Ibama e sem resultados práticos, a ponto de inflar resultados para justificar os investimentos.

Ainda assim, a presença militar na fiscalização foi prorrogada até novembro. Em outra frente, doze procuradores do Ministério Público Federal pediram o afastamento de Salles por improbidade administrativa, pelo desmonte dos mecanismos de proteção ao meio ambiente. O MPF reuniu registros de atos, medidas, omissões e declarações do ministro que contribuíram para a alta do desmatamento e das queimadas, sobretudo na região amazônica. A Advocacia Geral da União (AGU) pede que o afastamento seja discutido junto com outro processo já em curso, na 1ª Vara Federal em Brasília, ou seja extinto

6. O Velho surdo da praça. Se o governo não fosse formado por tanta gente caricata, começando pelo próprio presidente, Paulo Guedes chamaria mais atenção como um personagem cômico pelas profecias aleatórias que costuma fazer. Seja lá o que você pergunte, Guedes responderá que as privatizações vão gerar trilhões. Nesta semana, fez isso de novo, prometendo quatro grandes privatizações em três meses e a reforma tributária até o fim do ano.

No UOLCarla Araújo lembra que não é bem assim, que ambas medidas precisam passar pelo Congresso e que os temas sequer estão em pauta. Thomas Traumann lembra que em 2019 Guedes prometeu reduzir o déficit público a zero (o resultado real foi de R$ 90 bilhões negativos) e arrecadar R$ 1 trilhão em privatizações (deu menos de R$ 100 bilhões ). E que tanta fanfarronice só prejudica a credibilidade. Mais duro, Celso Rocha de Barros lembra que a reforma da Previdência só foi aprovada por conta do Congresso e que Guedes foi um fracasso em todos os aspectos.

Vale lembrar que até Bolsonaro já andava farto das promessas abstratas do seu Posto Ipiranga e, antes da pandemia, definia julho como o prazo final para Guedes mostrar algum resultado. Porém, Guedes foi ficando, porque ele é justamente o pilar do pequeno acordo nacional. É ele quem garante o apoio do pessoal do mercado financeiro, satisfeito com as medidas para o setor na pandemia e sem exigência de contrapartida, essas sim trilionárias e imediatas.

A contradição é que, passada a pandemia, Bolsonaro dependerá da reação da economia para sobreviver politicamente, e Guedes tem demonstrado há quase dois anos que não é a pessoa para isso. Pior: ao invés de recuperarem a economia, a dupla Bolsonaro-Guedes aumenta a recessão, diminuindo a capacidade de consumo das pessoas.

Vide a transformação em lei da MP que permite a redução de salários e jornada de trabalho durante a pandemia de covid-19, enquanto prorroga a desoneração da folha de pagamentos para empresas no mesmo período, além de insistirem em uma nova reforma trabalhista via “carteira verde amarela” para transformar o precário e informal em novo normal, e na formalização da prática das empresas de demitirem para recontratarem por um salário menor. Neste caso, o governo iria se arrastando até 2022, em crise econômica, mas sustentado politicamente, como foi o segundo governo FHC.

7. De volta ao ringue. A prisão de Fabrício Queiroz foi a senha para Sérgio Moro voltar à arena política, tentando ocupar o espaço do “anti-Bolsonaro” e reorganizar sua legenda partidária, a Operação Lava Jato. Como nos velhos tempos, Deltan Dallagnol deu uma entrevista chapa branca para a Folha de S. Paulo com cara de propaganda institucional.

O próprio Moro foi à Globonews para lembrar da sua encarnação mais famosa, o “anti Lula”. Para Helena Chagas, Moro e a República de Curitiba se colocaram numa contradição. Quanto mais Moro aparece como candidato, mais enterra a Lava Jato. Como talvez já se note pela queda de seguidores nas redes sociais dos dois ícones da operação, Moro e Dallangnol.

Mas para que o ex-ministro e ex-juiz tenha algum protagonismo, a Lava Jato precisa voltar a aparecer e, desta forma, ficam mais evidentes seus motivos políticos. No meio do caminho da Lava Jato, porém, não estão apenas Rodrigo Maia e o Congresso, antigos desafetos, mas a Procuradoria Geral da República (PGR) e Augusto Aras, justamente num momento em que o Procurador geral está num bom momento de relações com o STF.

Aliás, os embates com Curitiba, que descrevemos na semana passada, foram determinantes para a reaproximação de Aras com o Supremo, assim como o cerco aos organizadores dos atos contra o próprio STF e o Congresso.

Nesta quinta (9), Dias Toffoli, mandou as forças-tarefas da operação Lava Jato em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro compartilharem dados com a PGR, pivô da guerra interna no Ministério Público Federal (MPF). Pela mesmo motivo, a resistância da Lava Jato em compartilhar dados com a PGR, o Conselho Nacional do Ministério Público abriu um procedimento para apurar denúncias a pedido da OAB contra procuradores da força-tarefa.

8. Ponto Final: nossas recomendações de leitura.

Liderança Yanomami critica operação do Exército em Roraima. A comitiva do Exército que levou suprimentos e comprimidos de cloroquina para comunidades indígenas em Roraima parecia um safari e representou risco de contaminação, detalha a Agência Pública.

O que vai sobrar do Exército brasileiro? Na revista Época, Denis Burgierman faz um apanhado do vexame representado pelo Exército no enfrentamento da pandemia de coronavírus.

.  Quem são os 30%? Como escândalos, pandemia e auxílio emergencial podem estar mudando base de apoio de Bolsonaro. A BBC discute se Bolsonaro está trocando o perfil de seu terço fiel de apoiadores por eleitores de baixa renda, mas as pesquisadoras Camila Rocha (Cebrap) e Mariana Borges Martins da Silva (Oxford) acham que é muito cedo para afirmar esta transformação.

Em outra entrevista, para a agência Deutsche Welle, Rocha também afirma que "é possível dialogar com bolsonarismo popular moderado", disputando uma parte dos bolsonaristas,trabalhadores e afetados pela precariedade e pelo desemprego.  

A elite branca se acha imortal. E a história do Brasil lhe dá razão. Na revista Época, Luiz Fernando Vianna escreve sobre o comportamento da elite brasileira na pandemia, embalados por séculos de privilégios e que não admitem que nada coletivo atrapalhe seus desejos. 

“Professor” de Jair, Paulo Guedes é o mais bolsonarista dos ministros. Os economistas Fernando Cássio e Marco Antonio Bueno Filho analisam detalhadamente as intervenções de Paulo Guedes na reunião ministerial do dia 22 para provar como ele é o mais bolsonarista entre os bolsonaristas.

Tudo acaba em barro. Coveiro há dezessete anos em Manaus, Marcos Antonio da Silva Santos escreve um diário dos dias do novo coronavírus para a Piauí.

Podcast Guilhotina #73. A jornalista e professora Helena Martins é a convidada do podcast do Diplomatique Brasil para discutir a economia de dados, lei de fake news e o papel da mídia na construção da hegemonia.

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Edição: Leandro Melito