Desde 2001, em duas ocasiões, a Polícia Militar do Estado de São Paulo matou mais de 100 pessoas no período de um mês. A primeira foi em maio de 2006: 137 mortes, quando ocorreram diversos confrontos com o Primeiro Comando da Capital (PCC), paralisando o estado. A segunda vez foi em abril de 2020, durante a pandemia de covid-19, que paralisa o mundo: 102 mortes. Os números representam somente as mortes por policiais durante o horário de serviço.
Em abril deste ano, somados os óbitos cometidos por agentes da corporação fora do horário de trabalho, a conta fecha em 116 óbitos em abril deste ano. Os dados foram disponibilizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
É muito difícil olhar para esses números e encontrar alguma justificativa para o crescimento da letalidade policial.
Abril foi o primeiro mês que começou e terminou sob a pandemia de covid-19 e, portanto, com as medidas de distanciamento social em vigor. Segundo Samira Bueno, diretora executiva do FBSP, a letalidade policial aumentou nos primeiros cinco meses do ano. Durante a pandemia, no entanto, o crescimento chama mais a atenção, porque a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP)coloca a letalidade como decorrente de confrontos iniciados a partir de crimes contra o patrimônio, como roubo de celulares e carros.
Durante a pandemia, no entanto, tais crimes diminuíram “bruscamente”. “A verdade é que a conta não fecha. Essa é a grande questão quando a gente olha para esses números. Eu diria que levanta mais perguntas do que respostas, porque é muito difícil olhar para esses números e encontrar alguma justificativa para o crescimento da letalidade policial nesse período”, afirma Bueno.
“Já que eles justificam que esses casos, em sua maioria, decorrem de intervenções e crimes contra o patrimônio, aí é de se supor estão ocorrendo mais ocorrências e com mais ocorrências aumentam as probabilidades de uma situação de confronto”, argumenta.
De acordo com a Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo, nos meses de abril e maio, foram 187 mortes decorrentes de ações policiais: 116 no primeiro mês e 71 no segundo. No mês anterior, em março, foram registrados 75 óbitos. Em relação ao ano anterior, foram 76 assassinatos em abril e 67 em maio: 143 mortes, 44 a menos do que neste ano.
O Brasil de Fato entrou em contato com a SSP-SP pedindo posicionamento da pasta diante dos dados, mas até a publicação desta reportagem não houve retorno.
O número de mortes decorrentes de ações policiais em maio e abril de 2020 também subiu nos estados do Ceará e Rio de Janeiro.
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Ceará
No Ceará, foram 53 mortes por intervenção policial nos primeiros meses da pandemia, sendo 35 em abril e 18 em maio, segundo dados do Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará (FPSP-CE). No mês anterior, foram 10 registros. No comparativo com 2019, foram 26 assassinatos, sendo 14 em abril e 12 em maio. O número de mortes de janeiro a maio de 2020 ainda representa cerca de 57% dos assassinatos cometidos durante o ano todo de 2019.
Mesmo antes da pandemia, a ação da polícia sempre foi violenta dentro das comunidades.
“A gente percebe que mesmo com o isolamento social, as operações policiais não pararam. Se você olhar para abril, que é um dos meses que estávamos em isolamento social rígido, as operações policiais continuaram a ser realizadas, tanto aqui quanto no Rio de Janeiro, e elas são realizadas de maneira bem violenta”, afirma Régis Pereira, integrante do FPSP-CE.
Segundo Pereira, a violência praticada pelo Estado sempre foi focalizada nas regiões mais pobres: “Não tem ninguém chegando de forma violenta numa área nobre de Fortaleza”. O que muda é o aumento do número de mortes nesses locais. “Mesmo antes da pandemia, a ação da polícia sempre foi violenta dentro das comunidades. Com a pandemia, viu-se uma intensificação dessa violência nessas comunidades periféricas, porque o modus operandi da polícia do Estado é violento.”
Caso emblemático e recente de tal violência no Ceará ocorreu no dia 1º de julho. Mizael Fernandes da Silva, de 13 anos, foi executado dentro de casa enquanto dormia, por policiais do Comando Tático Rural (Cotar), da Polícia Militar, em Triângulo, no Chorozinho, região metropolitana de Fortaleza.
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Nesse quadro, Pereira também aponta para a falta de respostas do Estado diante da violência. Até o momento, não houve nenhum posicionamento público do governo do Estado do Ceará para “fazer uma investigação séria” e “investir numa política pública que evite esses assassinatos.
O Brasil de Fato entrou em contato com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará no dia 6 de julho a fim de obter um posicionamento sobre o caso Mizael e o aumento de mortes decorrentes de ações policiais, mas até a publicação desta reportagem não houve uma resposta.
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Rio de Janeiro
No estado do Rio de Janeiro, o isolamento social provocou uma redução nos índices de crimes contra o patrimônio, como roubo de carros e celulares. A letalidade policial aumentou.
Foram 65 óbitos decorrentes de ações policiais, sendo 30 em abril e 35 em maio, enquanto em março foram registradas 4 mortes, de acordo com o Observatório da Segurança do Rio de Janeiro. Em comparação com 2019, foram 49 assassinatos, sendo 19 em abril e 30 em maio.
Segundo Pablo Nunes, coordenador de pesquisa da Rede de Observatórios de Segurança, logo no início da pandemia, houve uma redução brusca do número de operações policiais em comparação com o ano passado. Nunes acredita que isso se deve aos reajustes feitos dentro da polícia devido ao avanço da doença. O recuo explica o baixo registro de mortes em março, se comparadas aos 23 assassinatos do mesmo mês, mas em 2019.
“Mas esse início de redução foi rapidamente revertido nas semanas subsequentes com o aumento muito expressivo em abril e maio. A gente viu que polícia voltou a toda, inclusive, muitas das vezes, fazendo operações em momentos de distribuição de cesta básica, com fatalidades”, afirma Nunes.
Assim como nas regiões periféricas cearenses, Nunes afirma que a violência policial também é focalizada em territórios pobres do Rio de Janeiro. “Aí a gente pode fazer um paralelo muito claro: enquanto os bailes funks são combatidos com caveirão, ou em São Paulo, quando os meninos são pisoteados, a gente vê a classe média alta descumprindo a lei e as medidas que foram adotadas pelos governantes, e não tem esse mesmo tipo de combate.”
Desde a reabertura de bares e restaurantes cariocas, fiscais da Prefeitura e policiais sofrem violência verbal de frequentadores de estabelecimentos de regiões nobres. na Barra da Tijuca, Zona Oeste, um fiscal afirmou que “um [homem] se aproximou e falou que o pai dele era procurador, que eu ia perder o meu emprego”. “Se esse mesmo tipo de comportamento ocorresse em favela, a pessoa já teria sido levada para a delegacia por desacato”, aponta Nunes.
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Em nota, a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar afirmou que as ações da corporação tem a preservação das vidas como preocupação central e que o confronto é uma “opção dos criminosos que, de posse de armas de alto poder de destruição, disparam tiros em direção à tropa sem medir consequências”.
Também informou que os policiais militares do estado atuam em um “ambiente extremamente hostil, precisando intervir em guerras violentas travadas por grupos criminosos rivais que disputam territórios para instalar bases de suas atividades ilícitas”.
A falácia da guerra às drogas e do inimigo externo
Para a diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é necessário uma análise mais profunda para compreender a que se atribui esse aumento nos estados, que possuem especificidades. É possível, no entanto, traçar uma linha em comum entre Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo: uma polícia de segurança pública “inadequada” e que “privilegia o confronto e não a inteligência (...) movida por uma lógica de guerra”.
Uma polícia letal, despreparada, incapaz de seguir protocolos básicos de uso progressivo da força.
Werneck acredita que a partir da premissa que o tráfico de drogas é um problema no Brasil, vem duas outras asserções: tal problema se assenta nas periferias e os jovens negros e pobres são uma ameaça à segurança pública. “O resultado é o que eu venho dizendo: mortes, uma polícia letal, despreparada, incapaz de seguir protocolos básicos de uso progressivo da força, uma política que ignora frontalmente as premissas dos valores constitucionais dos direitos humanos.”
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A diretora da Conectas é assertiva ao afirmar que o racismo está em todos os lugares. “Os meninos da favela recebem tiro de fuzil, não importa onde estejam, podem estar dormindo na cama, como no caso de Mizael, podem estar jogando bola, como o caso de João Pedro”, de 14 anos, que morreu no dia 18 de junho, durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Segundo os familiares, os agentes “chegaram atirando” na casa onde João Pedro e os amigos estavam.
“Não é gratuito. O racismo está por trás disso. Quem é negro e quase negro de tão pobre, como diz Caetano, são os alvos, e isso não é uma coincidência.”
Edição: Rodrigo Chagas