Há algumas semanas, em Brasília, os bichos começaram a entrar no noticiário
Por Olímpio Rocha*
Há algumas semanas, em Brasília, os bichos começaram a entrar no noticiário: primeiro, foi o cachorro Zeus, adotado por engano pela família presidencial, mas dias depois reivindicado por seu verdadeiro dono, que o descobriu num perfil do instagram presumidamente criado de boa fé pela primeira dama para o (cão) pastor. O fato peculiar, para dizer o mínimo, é que Zeus tinha sido rebatizado como Augusto, que também é o nome do Ministro mais fiel ao Presidente e do Procurador-Geral da República, acusado, por seus críticos, de ser encoleirado pelo Planalto.
Já na semana passada, igualmente na capital federal, foi a vez de uma cobra virar notícia: era uma naja, como aquelas encantadas por faquires nas fábulas hindus, que, conforme se soube, foi contrabandeada por um estudante de veterinária que acabou picado pelo réptil e quase morreu por conta disso. Diz-se que a família do “gênio da lâmpada” brasileiro precisou importar um raro antiofídico dos Estados Unidos para poder salvá-lo do veneno da serpente.
Por fim, na segunda-feira (13) foi a vez de uma ema que, durante um passeio doméstico do Presidente da República
, isolado no Palácio da Alvorada por conta de supostamente ter contraído a covid-19, acabou bicado pela ave “comunista”. Já começam as especulações e conspirações sobre a ema ser uma espécie de Adélio Bispo com penas ou que, no mínimo, ela estaria sob as ordens dos mesmos que teriam ordenado a facada em setembro de 2018.
Desobediência civil
No famoso livro “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell, ocorre uma revolta organizada numa granja, em que animais expulsam os humanos e tomam a administração do lugar. Cansados de serem explorados e mal tratados, os bichos resolvem por em prática novas regras de conduta, como a distribuição mais justa de alimentos entre eles, por exemplo. Depois, ao longo da trama, os conflitos entre os bichos revolucionários e seus líderes se intensificam e, com isso, as contradições nas relações de poder e dominação vão sendo exteriorizadas por Orwell.
No caso da “revolução dos bichos de Brasília”, independente de questões ideológicas de fundo, enquanto o cachorro Zeus desnuda a suposta honestidade, acima do bem e do mal, da família tradicional brasileira, que brada ser incapaz de cometer um ato de corrupção, mas que adota animaiszinhos à revelia de seus verdadeiros donos, a naja antiburguês se rebela contra seu algoz e a ema antifascista ataca o rancheiro que a oprime.
Em Orwell, o porco Major é que dá início à ideia de revolução, mas logo acaba morrendo, dando lugar a outros bichos cujos ideais não são tão igualitários assim e acabam não levando seu legado a sério, de maneira que a busca do poder pelo poder é que passa a os motivar, para além de qualquer sentimento de reorganização ou justiça social.
A ambição e a perseguição da vantagem fazem os bichos esquecer dos princípios e motivos da revolta, que eram o crescimento e desenvolvimento da granja em condições de igualdade para todos. Os animais que tomaram o lugar dos humanos passam a explorar os outros tanto quanto antes eram explorados. A metáfora de Orwell, portanto, para além de uma crítica específica a uma ideologia política, é muito mais um brado contrário ao autoritarismo e ao egoísmo que passam a grassar livremente na fazenda.
O problema que fica claro em Orwell é que, independente do regime político que se defenda, a necessidade de consciência do que nos oprime, principalmente os mais desfavorecidos de qualquer agrupamento humano, é que pode fazer com que haja mudanças concretas que diminuam a exploração cotidiana e o abuso de poder dos poderosos contra os subalternos. A desobediência civil é o único caminho que nos liberta da opressão e faz surgir a esperança numa sociedade menos corrupta e mais justa, ensina Orwell.
Voltando a Brasília, diante da falta de ações concretas do Congresso Nacional contra o dono da fazenda que nos oprime, só nos resta tomar a lição com o cachorrinho Zeus, o infiltrado, com a naja que atiça as ruas contra a burguesia e com a ema que gemeu no tronco do fascista (para lembrar Jackson do Pandeiro), nossos equivalentes ao Porco Major, de Orwell, torcendo para que os ideais originários de igualdade entre os bichos não seja desvirtuado pelos animais políticos que resolverem - se resolverem - colocar em prática a revolução dos bichos.
*Olímpio Rocha é advogado, professor, e membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Estado da Paraíba
Edição: Rodrigo Durão Coelho