Ter 2/3 de deputados para abrir o impeachment depende da sociedade civil pressionar o parlamento
O ser humano possui a capacidade de acostumar-se. Para o bem ou para o mal, essa é uma verdade incontestável. A adaptação faz parte das capacidades humanas. Conviver com a violência faz com que não haja estranhamento diante dela, por exemplo.
O número diário de mortes decorrentes da Covid-19 no Brasil não causa mais comoção. Os dados desta terça-feira (14) apontavam 1.300 óbitos nas últimas 24 horas, 41.857 novos casos confirmados, somando quase 2 milhões no total e 74.133 mortes. Os casos seguem crescendo assustadoramente, a curva de contágio é ascendente, mas estados e municípios, pressionados por empresários, promovem a reabertura da economia.
Muitos, já estão na fase do “liberou geral”. Os fins de semana nas grandes cidades mostram pessoas aglomeradas em bares e praias.
Não há controle da pandemia. Na verdade, não há controle de coisa alguma no país. Não temos governo, não temos politica pública de saúde. Não temos sequer um ministro da Saúde. O militar interino ocupa a cadeira há dois meses, desde a saída de Nelson Teich, no dia 15 de maio. Vivemos uma crise sem precedentes, econômica, social, política. Recheada da indiferença de vários setores da sociedade.
Passados mais de um ano e meio de governo Bolsonaro, aprovadas reformas liberais, cujo ônus recaíram exclusivamente sobre os trabalhadores, com fixação em ajuste fiscal como mecanismo para a atração de investimentos estrangeiros, o PIB publicano no início do ano foi de 1,1%, um fracasso. A conjuntura política, que transcorria oscilante entre normalidade, disfuncionalidade e tensão, despontou com a pandemia do novo coronavírus, quando Bolsonaro se colocou em oposição às orientações de autoridades sanitárias mundiais e locais, estimulando uma série crescente de conflitos. Criou um antagonismo entre o Poder Executivo e os defensores da ordem institucional.
A ameaça bolsonarista à democracia, e os sucessivos ataques à Constituição e às leis passou a ser encarada por partidos e coletivos de movimentos sociais e entidades à esquerda como uma oportunidade de reorientação rumo ao desfecho que se espera para o país. A chamada questão social voltou ao centro das discussões políticas; a valorização de um sistema público de saúde, a necessidade do estabelecimento de uma renda mínima para ajudar os novos e velhos desempregados a sobreviver na pandemia foram pontos de pauta significantes.
As ações de Jair Bolsonaro, ao pisar sobre mais de 70 mil mortos, com inúmeras demonstrações de desprezo pelas vidas humanas e pelas recomendações da Organização Mundial da Saúde – OMS, ao que chamou de “gripezinha”, “resfriadinho”, andando pelas ruas de Brasília sem máscara e sem quaisquer cuidados, cumprimentando pessoas em aglomerações o levaram ao contágio. Ao mesmo tempo em que se multiplicam denúncias contra ele no Brasil e nas cortes internacionais.
À medida em que a crise foi se aprofundando, crescem também a ansiedade pública e a necessidade de respostas, de posições firmes.
São 52 pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados, o último na segunda (14). Dois deles protagonizados por partidos de esquerda e um grande número de entidades e coletivos do movimento social e personalidades públicas, artistas, religiosos.
Diversas condutas imputadas a Bolsonaro constam na "lei do impeachment" (Lei 1.079/50), a desconstrução sistemática de direitos políticos, individuais e sociais, violações na área ambiental, cultural, de direitos da população negra e das comunidades quilombolas, de direitos dos povos indígenas e de direitos individuais e coletivos dos trabalhadores. O rol de cometimento de crimes de responsabilidade é imenso. Então a pergunta a ser feita parece ser: porque as pedras não se movem mesmo em meio ao vendaval? Ou, sem metáfora, porque o presidente da Câmara Rodrigo Maia não aprecia os pedidos de impeachment?
O confronto, sobretudo com o Supremo Tribunal Federal, a prisão do amigo Fabrício Queiroz com clara ameaça de comprometimento de seu filho, Flávio Bolsonaro, com os crimes imputados ao miliciano, a contenção e prisão de militantes bolsonaristas, a determinação de apreensão de celulares de deputados aliados, obrigou Bolsonaro a um recuo estratégico. Ele está, pela primeira vez desde que foi eleito, calado sobre qualquer tema nacional. Na dimensão política houve o abandono de romper com o presidencialismo de coalizão e a criação de uma aliança com o centrão, distribuindo cargos ao mais legítimo representante da "velha política", segundo a linguagem do próprio bolsonarismo, o que dá certo fôlego ao governo.
No entanto, avalia-se que se a situação do país, em termos econômicos, ou em questões relacionadas ao coronavírus e pandemia, deteriorar a situação política, nem mesmo o Centrão fica no barco governista.
Há, por certo, um número significativo de oportunistas e carreiristas da política que não arredarão pé do apoio, desde que tenham seus benefícios assegurados. Assim como os que, embora insatisfeitos, não reagem, a não ser verbal e superficialmente, e toleram o intolerável por recearem que sua reação poderia fortalecer a esquerda. Os “bons” que silenciam.
Rodrigo Maia, ao que tudo indica, está vendo essa somatória de cenários. Segundo as pesquisas, Bolsonaro é a expressão de quase um terço dos brasileiros, que o apoiam mesmo em sua política de morte, ou justamente por ela. Não conquistou a façanha de chegar à presidência da República sozinho. Foi apoiado por larga parte das elites nacionais, em todas as áreas. Muitos que já pularam do barco. E outros que ficam. O parlamento inclui-se nessa equação.
De todo modo, a criação de condições objetivas para que se tenha 2/3 de deputados aprovando a instauração de processo de impeachment, contudo, depende das diversas formas e capacidades de mobilização e luta da sociedade civil organizada para pressionar o parlamento a cumprir sua obrigação.
A criação de uma agenda efetiva e concreta com vários atores e mobilização nas redes o que, por seu turno, requer que se busque o convencimento da maior parte da sociedade, em diálogos cujo espaço está restrito, por hora, ao virtual. Um desafio imenso que precisa ser encarado, para que exista uma chance de criar possibilidades.
Por conseguinte, a luta contra o fascismo bolsonarista e pela democracia não pode ser separada da luta contra a agenda ultra neoliberal, que motivou a ruína recente da democracia brasileira, e que segue aprofundando as desigualdades e a exclusão social, fatores estruturais que enfraquecem o processo democrático no Brasil. Democracias fortes demandam igualdade social. A luta pode ser por etapas, mas é una.
Edição: Rodrigo Durão Coelho