Inconstitucional

Prisão domiciliar é realidade distante para presos do grupo de risco da covid-19

O STF negou 84% dos pedidos de prisão domiciliar relacionados a grupos de risco e o novo coronavírus

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Nos presídios, o estado de São Paulo é o que tem mais óbitos (15) e o Distrito Federal, mais casos confirmados (1.543) de covid-19 - Wilson Dias / Abr

Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que, até 13 de julho, o Brasil registrou 7.220 casos confirmados e 66 óbitos por covid-19 de pessoas presas em penitenciárias. Entre maio e junho, meses mais expressivos da pandemia, o número de mortes aumentou 288% e o de casos confirmados, 2.237%.

O estado de São Paulo é o que tem mais óbitos (15) e o Distrito Federal, mais casos confirmados (1.543).

A primeira morte ocorreu no dia 15 de abril, quando um homem de 73 anos não resistiu à covid-19, no Instituto Penal Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. Outros dois presos, Gerson Gomes de Oliveira e Everson Luis Skrepec, que morreram por insuficiência respiratória após contraírem o vírus, em maio, estavam no mesmo local em que João (nome fictício), de 33 anos, se encontra neste exato momento: Penitenciária II de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. 

A esposa de João, de 35 anos, conversou com o Brasil de Fato com a condição de manter o anonimato e afirmou que “muitos dali são do grupo de risco”: hipertensão, obesidade mórbida, hepatite c, asma, bronquite, HIV, diabetes e câncer. Mesmo assim, ela afirma que o diretor da penitenciária apresenta as circunstâncias como normais, enquanto a prisão domiciliar é realidade distante. 

João sofre de dores abdominais há pelo menos dois anos e meio, período em que espera por um atendimento médico que nunca ocorreu. Ele não está no grupo de risco, mas suas dores preocupam a família, que solicitou o pedido de prisão domiciliar. A Justiça, no entanto, indeferiu, assim como fez com os pedidos feitos por Gerson Gomes de Oliveira e Everson Luis Skrepec, que vieram a óbito.

Mesmo nos casos mais explícitos de presos dentro do grupo de risco, o indeferimento têm dado a tônica da postura do Poder Judiciário.

No início do mês, a ministra ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou um pedido de prisão domiciliar da Defensoria Pública da União (DPU) para uma senhora de 66 anos com hipertensão, diabetes e HIV, que se encontra em um presídio em Santa Catarina por tráfico de drogas. O caso foi parar na Procuradoria-Geral da República (PGR), onde também foi negado. 

Segundo Rafael Custódio, advogado criminalista e vice-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), mesmo com as defensorias públicas entrando com pedidos de prisões domiciliares, são “vários” os indeferimentos.

Para ele, os juízes se utilizam de uma “casca de raciocínio jurídico” para justificar suas decisões, “mas é para esconder, na verdade, uma mentalidade ainda muito conservadora com relação ao desencarceramento. A gente percebe que a pandemia está explicitando esse caráter punitivista do nosso Judiciário”. 

Nós estamos pedindo que o Judiciário, diante da excepcionalidade do momento, aplique de verdade a lei e a Constituição

Resolução do CNJ

No início da pandemia, em março, o CNJ soltou uma resolução, com validade de 90 dias, com orientações ao Judiciário para evitar a contaminação em massa por covid-19 nas penitenciárias brasileiras.

O documento recomenda a prisão domiciliar para aqueles que são do grupo de risco, em final de pena e que não tenham cometidos crimes violentos ou de grave ameaça, como latrocínio, estupro e homicídio. No dia 12 de junho, a resolução foi renovada por 90 dias.

Um levantamento realizado pelo jornal O Globo, entretanto, mostrou que 84% dos pedidos de prisão domiciliar feitos ao STF, tendo como embasamento a resolução do CNJ, foram negados. De 2.783 pedidos julgados, a maioria foi negada: 2.345.

Custódio explica que o documento não tem força de lei, mas peso político e institucional. No entanto,“infelizmente, essa recomendação está esbarrando nesse Judiciário nosso que é historicamente insensível a essa agenda. Não é à toa que temos a terceira maior população carcerária do mundo, e o Judiciário é corresponsável por isso”, afirma o advogado.

São 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os regimes, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2019. Com esse número, o Brasil fica atrás apenas dos Estados Unidos e China.

Assim como o CNJ, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) também defendeu meios alternativos à prisão, quando possíveis, à pandemia.

O presidente da organização, Joel Hernández García, afirmou que os presídios vivem, “historicamente fora do alcance de políticas públicas de reconversão da pena, agora como emergência sanitária, devem acelerar essas medidas e recorrer a meios alternativos à prisão”, durante um seminário online sobre as recomendações da comissão. 

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“Aplique de verdade a lei e a constituição”

Nem o posicionamento da OEA nem a resolução do CNJ foram suficientes para Augusto (nome fictício)*, de 41 anos, conseguir prisão domiciliar. O juiz negou o pedido da Defensoria Pública e o manteve na penitenciária. Ele toma remédio para hipertensão há cerca de dez anos.

“O meu marido está no grupo de risco dentro da cadeia. Foi transferido porque está sofrendo represálias por causa das denúncias que estamos fazendo”, afirma a esposa de Augusto que prefere não ser identificada e nem expor o nome do presídio em que o marido se encontra, por medo de retaliações. 

“A gente se sente mal tratado. Se ele pegar essa doença, é fatal para ele”, conclui a esposa que tem notícias do marido apenas quando o advogado consegue acessá-las, o que ocorre com uma frequência espaçada.

Nesse sentido, um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Associação de Familiares e Amigos de Presos e Presas, de junho deste ano, mostrou que 7 a cada 10 famílias de presos do estado de São Paulo não têm notícias dos presidiários durante a pandemia

Rafael Custódio reforça que o pedido de prisão domiciliar é para que se faça cumprir a lei e não para abrir as portas do sistema prisional indiscriminadamente. “Nós nem CNJ estamos pedindo para que rasguem a lei e a Constituição. Na verdade, é o contrário. Nós estamos pedindo que o Judiciário, diante da excepcionalidade do momento, aplique de verdade a lei e a Constituição”, defende.

O advogado criminalista explica que hoje o Brasil apresenta um dos piores cenários da América Latina quando o assunto é penitenciária: um déficit de 300 mil vagas. Isso significa 300 mil presos a mais que o sistema prisional comporta. Além da superlotação, ele alerta para o histórico de tortura, falta de acesso à água potável e à alimentação de qualidade – “um estado de coisas inconstitucionais”. 

“Como é que você vai fazer isolamento social dentro de uma cadeia superlotada? Como é que vai usar máscara? Como é que vai se higienizar sendo que nem tem água potável? Como é que vai lavar a mão?”, questiona Custódio.

Caso Queiroz

Nesse cenário, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) entrou com um habeas corpus (HC) coletivo no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) solicitando a prisão domiciliar para todos aqueles em situação de prisão preventiva, do grupo de risco da doença e acusados de crimes não violentos e sem grave ameaça.

Segundo Hilen Oliveira, advogada do coletivo, o pedido se baseou na prisão domiciliar concedida, pelo presidente do STJ, o ministro João Otávio de Noronha, a Fabrício Queiroz, por estar no grupo de risco, e sua esposa, Márcia de Oliveira Aguiar, por ser sua cuidadora

A liminar do CADhu se justifica na violação do princípio da isonomia, segundo o qual todos os iguais perante a lei. “Nós percebemos que, nos tribunais de instâncias inferiores, esse benefício não estava sendo concedido a outros presos que tinham os mesmos critérios que Fabrício Queiroz”, afirma Oliveira, que já viu até mesmo presos com câncer, a mesma condição de Queiroz, com o pedido de prisão domiciliar negado.  

Nesta quinta-feira (16), a DPU entrou no processo endossando o argumento do coletivo, e, na última segunda-feira (13), o pedido foi distribuído no STJ e caiu nas mãos do o ministro João Otávio de Noronha, o mesmo que aceitou o pedido de Queiroz.

Em nota, a Pastoral Carcerária afirma que a prisão domiciliar concedida a Queiroz é “correta”. No entanto, a decisão deferida para alguns e negada para outros mostra “a seletividade do poder Judiciário e do sistema penal, que prioriza as classes sociais mais altas e pessoas com poder e influência”.

Posicionamento SAP

O Brasil de Fato entrou em contato com a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) para obter mais informações sobre o caso dos presos da Penitenciária II de Presidente Venceslau. Até o momento, no entanto, não houve um retorno.

Edição: Leandro Melito