Militares

Artigo | Passado não resolvido: o autoritarismo que se faz presente

Para jurista, ao longo da história, não houve do estamento militar brasileiro nenhuma defesa verdadeira do povo

São Paulo (SP) |
Em época de coronavírus, o "comportamento dos comandantes das três forças escancara o passado autoritário brasileiro" - Divulgação

Quando Gilmar Mendes, em 11 de julho de 2020, manifestou que o Exército estava “se associando a genocídio na pandemia do novo coronavírus”, o mundo caiu sobre a cabeça do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Os comandantes militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, associados com o ministro da Defesa do governo de Jair Bolsonaro, assinaram nota de repúdio e ameaçaram representar contra o juiz da Suprema Corte ao procurador Geral da República.

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Naquela data, o Brasil tinha no comando do Ministério da Saúde um general da ativa do Exército (que não é médico) e apresentava quase 2 milhões de infectados e mais de 70 mil mortos pelo novo coronavírus, mas não tinha (nem tem agora) nenhuma política pública federal de controle da pandemia que assolou o país.

Os trágicos números trazidos a público só não são ainda maiores por conta das ações desesperadas de governadores e prefeitos, que, além de não terem tido nenhuma ajuda do governo federal, foram por ele ameaçados com o represamento das verbas aprovadas pelo Congresso Nacional para o combate à covid-19.

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O mencionado comportamento dos comandantes das três forças (e também dos militares da ativa e da reserva que integram o governo federal) escancara o passado autoritário brasileiro, em que os homens da caserna contribuíram direta e indiretamente e até mesmo fomentaram ações ilegais que jogaram o país nos braços de pessoas questionáveis, saídas das suas fileiras.

Tudo isso possibilitou que, no presente, milícias paramilitares nas cidades e grileiros e garimpeiros no campo tenham suas imagens vinculadas ao atual chefe do governo.

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Aloy Jupiara e Chico Otavio, em Os Porões da Contravenção , relatam “a senha para a barbárie”:

“O rosto sorridente do presidente Costa e Silva, no casamento de seu ajudante de ordens, o tenente Cláudio Barbosa de Figueiredo, com Sandra Maria de Souza Maselli, não denunciava o que estava por vir. A cerimônia, celebrada na igreja Nossa Senhora do Carmo, pelo monsenhor Ivo Calliari, no dia 8 de dezembro de 1968, reuniu a elite governante. Costa e Silva era padrinho da união religiosa. Ao seu lado, também sorridente, capitão Guimarães assinava o livro como padrinho do casamento civil. O menino de Vila Valqueire, amigo do noivo deste os tempos da Amam (Academia Militar das Agulhas Negras), experimentava os degraus mais altos do poder. Nos quartéis, a tropa rugia à espera de um sinal. E ele veio cinco dias depois, em 13 de dezembro, quando Costa e Silva baixou o Ato Institucional número 5, que mudaria a história do país, manchando-a de sofrimento e sangue. Era o momento de passar à ofensiva. A medida, expressão mais acabada da ditadura militar brasileira, também mudaria para sempre a carreira de Guimarães.”

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Leonencio Nossa, em Mata! O major Curió e as guerrilhas no Araguaia, descreve como se deu a ação dos militares na garimpagem de Serra Pelada:

“Curió pernoitou no povoado de Carajás. No dia seguinte retornou a Brasília. Chegou com o ouro empacotado no gabinete do general Octávio Medeiros. O Jornal do Brasil publicou que ele jogou o ouro na mesa do presidente Figueiredo. General que gostava de andar a cavalo e com uma espada na mão pelo centro de Brasília, Newton Cruz, chefe do Serviço Nacional de Informações, mandou Curió fazer uma exposição para o governo. Por volta de quatro horas, numa sala do Centro de Informações do Exército, o agente fez uma explanação para o ministro da Fazenda, Ernane Galvêas, e o presidente da Caixa Econômica Federal, Gil Macieira. Defendeu a exclusividade na compra de ouro do garimpo e um trabalho de massificação para contrapor à esquerda. Macieira foi contrário à ocupação do garimpo. Dizia que era inviável o esquema de compra de ouro. Newton Cruz perguntou se precisava de tropa no garimpo. 

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- Lá não é para tropa, general. É para geólogo. Eu faço o trabalho de conscientização – respondeu Curió. Octávio Medeiros aprovou a intervenção em Serra Pelada.

O regime, à beira da falência, entregou a Curió o garimpo. O governo avaliava que o ouro daria tranquilidade ao país num momento de crise internacional provocada pela indústria do petróleo e de aumento no valor do metal na Europa.”

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Vale esclarecer que atualmente a região de Serra Pelada chama-se Curionópolis, em homenagem ao seu fundador, prefeito e representante parlamentar na Câmara dos Deputados.

No dia 4 de maio de 2020, em plena pandemia, Sebastião Curió foi recebido com distinção por Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto, num claro gesto de reavivamento das lembranças do passado do autoritarismo, da tortura, da grilagem de terras, do contrabando de ouro e do genocídio indígena, fortemente presentes nos dias atuais no Brasil, juntamente com as ações das milícias nas cidades e os assassinato de negros e pobres nas favelas e periferias.

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Além disso, em 16 de julho de 2020, o chefe militar do Comando Sul das Forças Armadas norte-americanas, Almirante Craig Faller, apresentou ao presidente Donald Trump o Brigadeiro do Ar da Força Aérea Brasileira, David Almeida Alcoforado, afirmando que “os brasileiros estão pagando para ele vir para cá e trabalhar para mim”.

Ou seja, trata-se de um militar brasileiro de alta patente, pago pelo Brasil, que foi colocado a serviço do país norte-americano, o que, sem nenhuma dúvida, se constitui numa grave violação à Constituição.

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Quando o ministro Gilmar Mendes fez referência ao “genocídio” em curso no país durante a pandemia, tratou-se de mera constatação da realidade; o que chocou foi a reação desnecessária e exagerada dos militares, que deixaram patente a sua incapacidade de conviver com a democracia, numa ordem republicana, como consagra a Constituição de 1988.

Tudo isto ocorreu e ocorre ainda em razão da visão distorcida que os militares brasileiros têm a respeito do seu país e de seu povo, uma vez que estão sendo patrocinados pelos norte-americanos, por meio de equivocada cooperação, desde a Segunda Guerra Mundial, como manifestado pelo referido comandante chefe militar do Comando Sul das Forças Armadas dos Estados Unidos da América do Norte.

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Essa contínua atuação dos militares deve-se à ingerência da classe dominante brasileira, que sempre os utilizou como milícias, criadas e mantidas para defender os interesses patrimoniais e exploratórios de uma suposta elite, que, sem nenhum pudor, abdica passivamente de qualquer projeto de construção de um país soberano, que traga desenvolvimento para todo o povo brasileiro, constituído na sua formação por índios, negros e pobres.

Daí o passado não resolvido, que se manifesta pela atualidade das mazelas da escravidão, representadas pelo racismo, pelo preconceito, pelo abuso e exploração das mulheres, pelos assassinatos de jovens negros nas cidades e de trabalhadores nos campos, pelo extermínio dos povos indígenas, pela derrubada e queimada das florestas e pelo patrimonialismo, que se apropria dos bens públicos que, numa República, deveriam ser de todos e com todos sendo tratados igualmente.

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Ao longo da história, não vimos nem ouvimos do estamento militar brasileiro nenhuma defesa verdadeira do seu povo; ao contrário, são constantes suas ameaças contra pessoas e instituições progressistas e seu emprego violento contra sua própria gente.

Contudo, quando ouvimos da voz de um comandante militar americano que nossos militares são colocados a serviço dos interesses estrangeiros, com ordenados pagos pelos brasileiros, nos faz crer que é necessária a constituição de novas forças militares, que sejam educadas tendo em vista o conceito de soberania popular e cuja formação seja direcionada efetivamente para a defesa do seu povo e a proteção das riquezas do país.

*Jorge Folena é doutor em Ciência Política e mestre em Direito, além de diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

Edição: Douglas Matos